QUANDO A POLÍTICA E O CINEMA ENTEDIAM
 

 

04 de maio de 2006

Nelson Pereira dos Santos representa, juntamente com Glauber Rocha, o pico do cinema brasileiro. Quem entre nós chegou a rodar obras-primas tão perfeitas quanto Rio 40 graus (1955) e Vidas secas (1963)? Mas, a partir de Jubiabá (1986), o processo de tedioso envelhecimento do cinema de Nelson começou a apresentar-se ao espectador, obrigado a deparar com realizações disformes como A terceira margem do rio (1993) e Cinema das lágrimas (1995); houve, é verdade, uma certa recuperação em Casa grande & Senzala (2002), rodado para a televisão, e Raízes do Brasil (2003), uma emocionada evocação documental da figura do sociólogo paulista Sérgio Buarque de Holanda. Mas em Brasília 18% (2006) Nelson derrapa outra vez num cinema sem inspiração e amorfo, revelando a desorientação atual de seu projeto cinematográfico.

Aparentemente Brasília 18% é uma honesta e digna visão dos podres da política brasileira, cada vez mais acentuados. No momento em que a esquerda nacional se decompõe desnudando-se de sua moralidade hipócrita, o filme de Nelson pretende expor os signos de hoje da classe política brasileira. Uma narrativa política com corte policial, eis o que é. Um pouco à maneira (anacrônica) do greco-francês Constantin Costa-Gavras, Nelson busca fazer uma obra política identificada com os processos comerciais do cinema de ação. Nelson pertence a uma geração intensamente política: o ritmo narrativo de seu filme capta uma identidade ideológica que pode fugir um pouco à compreensão do público atual, alienado e distante.

Mas, sob uma aparente correção de bem-feito e ideologicamente preciso, Brasília 18% é uma película tediosa pela falta de seiva da direção de Nelson, que em Raízes do Brasil mostrou uma visão mais apurada do país. Ciente da trivialidade insossa de sua trama, Nelson tenta diferenciar-se por alegorias curiosas, dando às personagens nomes de escritores brasileiros do passado: Olavo Bilac, Raimundo Correa, Silvio Romero, Augusto dos Anjos, Tobias Barreto, Gonçalves Dias e outros. Seria uma homenagem de Nelson ao fato de, agora, ter sido eleito para a Academia Brasileira de Letras? O elenco é irregular: Carlos Alberto Riccelli, que foi o travessamente brasileiro boto num belo filme de Walter Lima Jr. e se converteu numa esquiva criatura de obscuro passado político em Dois córregos (1999), de Carlos Reichenbach, está meio sem energia, com uma fala bastante débil e frouxa, assim como sua bela esposa, Bruna Lambardi, que para delícia dos que curtem a plástica do corpo feminino aparece nua numa cena de avião; a caracterização de Michel Melaned como Augusto dos Anjos, dando-lhe um enfoque atrevidamente marginal, é boa, assim como o desempenho Carlos Vereza (que foi um extraordinário Graciliano Ramos no filme Memórias do cárcere, 1984, de Nelson) na pele do senador Silvio Romero; porém Nelson poderia ter conferido mais nuanças à participação do bom Othon Bastos e ter evitado o estrelismo vazio de Malu Mader (que cai bem em filmes descarados, como Bellini e a esfinge, 2002, de Roberto Santucci Júnior, mas não fecha com a seriedade do cinema de Nelson).

Definitivamente Brasília 18% é exatamente isto: 18% (se tanto) do cinema de Nelson Pereira dos Santos, o maior dos cineastas brasileiros.

Por Eron Fagundes

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