O AMOR FORA DO TEMPO E DO ESPAÇO
 

 

07 de fevereiro de 2006

A complexidade estilística de 2046, os segredos do amor (20446; 2004), mais um belo filme do chinês Wong Kar-Wai, nasce de uma peculiar situação plástica em que o realizador parece mover os tons da fotografia no mesmo compasso em que se exige dos atores uma colocação e um movimento extremamente etéreos e abstratos; com um jeito de filmar que atingiu o cimo da precisão e da poesia em Amor à flor da pele (2000), Kar-Wai constrói histórias de amor que se passam fora do tempo e do espaço: para isto precisa destruir as noções habituais do tempo e do espaço, algo que ele exacerbou, experimentando pela montagem, em Felizes juntos (1997).

A beleza dos sentimentos e do sexo está presente em cada quadro de 2046; em nenhum momento grosseira ou sem propósito, a narrativa de Kar-Wai é uma das mais densamente eróticas do cinema dos últimos dez ou vinte anos. Ele refaz, de maneira original e atrevida, e sem recursos anacrônicos, o cinema dos mestres europeus das décadas de 60 e 70, atingindo o cerne da memória e do coração do homem.

Há um ponto irônico e ousado em 2046 que não tem sido bem compreendido; compreende-se: trata-se duma ruptura no cinema espiritual e intelectual de Kar-Wai, um corte travesso que realça seus gaguejos estilísticos. A ironia vem da utilização duma falsa narrativa de ficção científica: um estranho trem do futuro (2046 tanto pode ser uma data, um vagão ou um quarto) leva as pessoas para um lugar de lembranças perdidas de onde ninguém jamais voltou (como o país da morte do dramaturgo inglês William Shakespeare). É neste lugar que vai dar o protagonista para recapturar as evocações de sua vida sentimental: ele é um escritor que na véspera de Natal de 1966 se apaixonou por uma mulher convidando-a para ir com ele às festas de fim de ano em Hong Kong; depois, por várias vésperas de Natal, o filme observa seus relacionamentos com outras mulheres onde ele sempre procurou vestígios da amada perdida no tempo; interceptando habilmente os processos amorosos com cenas deste trem insólito do futuro, Kar-Wai edifica um filme pleno, que encanta o observador mesmo que trate do desencanto dum tempo que passou e que deixou o amor fora de qualquer tempo e de qualquer espaço.

Por Eron Fagundes

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