RIGOROSA ENCENAÇÃO DO TRAGICÔMICO COTIDIANO
 

 

04 de abril de 2008

Basisamente, as preocupações essenciais do diretor romeno Cristian Mungiu, em 4 meses, 3 semanas e 2 dias (4 luni, 3 saptamani si 2 zile; 2007), são de natureza formal. Longe de montar um filme habitual para contar uma história e emocionar o espectador, com aquela montagem audiovisual a que a gramática convencional de filmar nos habituou, o que Mungiu faz é desviar do primeiro plano das atenções o olho do espectador debruçado sobre os gestos estáticos das personagens para o comportamento inusitado da câmara. Mungiu chama a atenção para a linguagem do cinema; é muito mais uma lição de semiótica visual. Mas não se trata aqui de um formalismo estéril. A forma de Mungiu nasce do próprio tema que ele escolheu.

Reduzindo o cinema a seu mínimo, a linguagem de Mungiu é tão rigorosa quando despojada. São duas as sintaxes fundamentais da realização romena. A utilização de longos quadros fixos —a câmara fixa o cenário e acompanha interminavelmente diálogos ou breves gestos— e aqueles travellings obscuros e labirínticos (especialmente quando são despejados em ruas sem iluminação da cidade) que se grudam no corpo desesperançado da protagonista, a jovem estudante Otilia que quer ajudar sua amiga a fazer um aborto. Aí é que se pode dizer da estreita aliança entre fundo e forma na estrutura estilística do cineasta: o quadro fixo, com uma plasticidade às vezes opaca, representa mesmo o universo humano e social duma Romênia que parece não sair do lugar; e aquela câmara pegajosa no encalço da criatura (mais ou menos como nos filmes  dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, mas de maneira ainda mais opressiva e mórbida) é a submissão do indivíduo à prisão do olhar do outro, que pode ser o espectador na sala de cinema ou a sociedade vigilante.

A questão da gravidez indesejável dos jovens, tratada de maneira dura e impiedosa pelo diretor romeno, foi abordada por uma realização norte-americana recente, Juno (2007), de Jason Reitman. Mas se a adolescente americana optou por ter a criança e dá-la para adoção, a jovem romena, auxiliada por sua amiga, se submete ao cruel ritual do aborto. São extremamente fortes as tensões entre o aborteiro e as duas garotas num quarto de hotel negociando as condições do procedimento; e a implacável câmara fixa de Mungiu não dá trégua ao mal-estar do observador. Este mal-estar vai atingir seu ápice quando vemos diante da câmara os restos do feto despejado pelo corpo de Gabita; Otilia pega dos despojos orgânicos do que seria o filho de sua amiga e sai pela escuridão das ruas, perseguida por uma câmara que parece que vai atacá-la a qualquer momento.

Certo: 4 meses, 3 semanas e 2 dias expele morbidez e senso trágico por todos os seus fotogramas. Mas há uma ironia de observação que traz à tona uma comicidade secreta, enviesada, perversa. Apesar de extremamente cru, o filme tem lá seus esgares de um quase-riso ou quase-sarcasmo.

Por Eron Fagundes

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