BERNADET PERSEGUE KIAROSTAMI
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06 de dezembro de 2004

Jean-Claude Bernadet, ensaísta brasileiro de cinema que nasceu na Bélgica, é um espírito múltiplo de nossa cultura. É bem verdade que sua principal veia é a análise de filmes. No clássico Brasil em tempo de cinema (1967) ele se debruçava sobre como a classe média brasileira determinava a forma de produção e a estrutura dos filmes, especialmente em seu agudo texto que trata de Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Em Cineastas e imagens do povo (1985) Bernadet esmiúça, debruçando-se sobre alguns documentários de curta-metragem, as tensões experimentadas pela intelectualidade nacional em suas relações com o povo. Finalmente, em O vôo dos anjos (1990), talvez seu livro mais profundo cinematograficamente, nosso autor parte dos primeiros filmes dos brasileiros Júlio Bressane e Rogério Sganzerla para decompor psicanaliticamente a estética fílmica.

Todavia Bernadet não é somente o crítico de cinema notável. Rodou o documentário de montagem São Paulo, sinfonia e cacofonia (1995), em que, colecionando imagens que o cinema brasileiro apresentou da metrópole paulistana, ele afiava uma perícia de realizador inusitada. É co-roteirista de filmes como o antigo O caso dos irmãos Naves, de Luiz Sérgio Person, e os recentes Um céu de estrelas e Através da janela, ambos dirigidos por Tata Amaral. Bernadet escreveu uma obra-prima da ficção nacional de hoje: A doença, uma experiência (1996), um relato semidocumental que dá a palavra a um aidético.

Agora Bernadet chega ao mercado cultural com um novo livro sobre cinema. Caminhos de Kiarostami (2004) é uma renovada amostra de seu talento para pensar sobre filmes. No lançamento de seu livro em Porto Alegre, após a exibição de Gosto de cereja (1997), de Kiarostami, Bernadet revelou, com sua ironia refinada, que o livro só saiu porque o filme em cuja produção estaria envolvido sofreu os atrasos comuns entre nós; e mais: teve de concluir apressadamente seu trabalho porque o editor lhe deu uma data, que era a da visita do cineasta iraniano ao Brasil. O leitor de Bernadet sente essa pressa de conclusão nas páginas finais do ensaio.

Algumas diferenças entre o atual livro e os anteriores de Bernadet. Parece-me ser a primeira vez em que seu olhar não se volta para o cinema nacional. É um estrangeiro que lhe interessa: Kiarostami. Se é bem verdade que antes já Bernadet aqui e ali se valia de depoimentos dos cineastas e do confronto de opiniões, em Caminhos de Kiarostami o procedimento é exacerbado. E o fluxo contínuo e aparentemente desorganizado da exposição da matéria contrasta com o rigor estrutural de, por exemplo, O vôo dos anjos.

Um dos vocábulos do título da obra, “caminhos”, indica a maneira de abordagem de Bernadet. Como ocorre o deslocamento nos filmes de Kiarostami: a importância do carro nas narrativas do cineasta, chegando ao processo radical de transformar um automóvel no cenário único de Dez (2002), que é justamente o filme de onde sai o cérebro de Bernadet para iluminar várias questões trazidas pelos outros filmes do cineasta. Caminhos: nestes caminhos o crítico Bernadet persegue o realizador Kiarostami de maneira implacável. Bernadet vai ao carro de Viagem pela Itália (1953), do italiano Roberto Rossellini, para identificar certas origens do cinema de Kiarostami. O carro no cinema talvez esteja mais longe: na carruagem e seus tetos baixos de No tempo das diligências (1939), o faroeste famoso de John Ford, vê só. Muitos usaram o carro para dar movimento a seus filmes cheios de uma lentidão íntima, como o espanhol Carlos Saura em Stress es tres, tres (1968). Mas é em Kiarostami que o filme-carro adquire sua estatura de linguagem; Bernadet esforça-se por entender o estatuto do carro em Kiarostami.

E esta análise do uso do carro como frase cinematográfica desemboca noutra: seria o cinema de Kiarostami o fim das distinções entre ficção e documentário? Antes, bem antes do diretor iraniano, o cineasta alemão Alexander Kluge desfez esta cisão; mas seu processo era barroco, enquanto Kiarostami se vale do despojamento. Curiosamente, Bernadet revela que a idéia de seu ensaio estava em estabelecer um contraste entre o inglês Peter Greenaway (“um artifício que esbanja suas lantejoulas”) e o iraniano Abbas Kiarostami (“cuja linguagem é reduzida a um minimalismo franciscano”), demonstrando no fim que ambos são artificiais, “só que um mascara o artifício enquanto o outro o exibe”.

A questão do falso e da impostura nos procedimentos usados por Kiarostami passa pela presença obsessiva do automóvel (que chega a colar-se no olhar da câmara mimetizando-a) e atinge os truques de encenação de Close up (1989). No fundo, segundo Kiarostami visto segundo Bernadet, a realidade é só uma questão de aparência.

Caminhos de Kiarostami é um relato muito pessoal, difuso e perplexo, sobre uma obra cinematográfica que, para bem ou para mal, tem modificado nossa percepção visual do mundo.

Por Eron Fagundes