A Ferocidade de Kubrick
É
verdade que Spartacus, rodado em cinesmacope, estará melhor desfrutado numa
tela de cinema. Os detalhes brilhantes da fotografia e as magníficas estruturas
cênicas de batalhas são mais bonitas e cheias de impacto no cinema. Ainda assim,
o cinéfilo curioso não tem do que se queixar da oportunidade de vê-lo em DVD.
Como ocorre com os filmes de cinemascope nas versões para a telinha, uma faixa
preta em cima e outra embaixo devem ajudar a manter a horizontalidade da imagem.
De qualquer
maneira, ver ou rever Spartacus agora em DVD permite ao observador retomar o
contato com a obra de um maiores cineastas do mundo. Quando realizou este filme,
a carreira de Kubrick começava a subir a rampa. Se o filme anterior de Kubrick,
Glória feita de sangue (1958), tratava de maneira crítica o tema bélico, em
Spartacus, um dos sub-temas é igualmente a guerra: uma guerra do mundo antigo,
uma rebelião de escravos liderada pela personagem-título que provoca um confronto
com o império romano e uma inevitável mortandade, como tantas outras na história
em que os mais fortes destruíram os mais fracos; pela maneira como Kubrick expõe
as pelejas, o caráter marginal dos escravos leva o observador de hoje, época
brasileira de revoltas nas prisões, a ligar os companheiros de Spartacus aos
apenados nacionais, o que só enriquece a visão histórica de Kubrick para além
do tempo retratado. O mesmo furibundo intérprete Kirk Douglas de Glória feita
de sangue retorna em Spartacus: ele encarna a revolta furiosa contra os fascistóides
senadores romanos, de que a personagem de Marcus Licinius Crassus representa
a liderança.
É
da oposição entre Spartacus (o sonho libertário) e Crassus (o fascismo, a opressão)
que Kubrick tira parte do fascínio de seu filme, pleno de momentos emocionantes.
A cena em que Crassus ordena aos escravos derrotados que identifiquem Spartacus
(seu corpo ou sua pessoa) e, um a um, todos vão levantando-se e exclamam, um
de cada vez: "Eu sou Spartacus!", é um destes momentos; ali Kubrick,
bem ao gosto do cinema crítico dos anos 60, reflexiona sobre a união dos oprimidos
como única forma de resistência. Quando Crassus obriga Spartacus a lutar com
seu parceiro Antoninus, e o escravo-protagonista mata o outro para evitar-lhe
o sofrimento na cruz, eis outro lampejo de grandeza. Nenhum talvez supere a
seqüência final quando a mulher de Spartacus, Larínia, vendo-o na cruz, apresenta-lhe
o bebê, filho deles, e revela: "Spartacus, eis seu filho. Ele é livre!"
A câmara extrai do rosto do ator, diante da revelação da mulher, um dos instantes
máximos da interpretação cinematográfica.
Enfeixando
este comentário, quero lembrar a influência da obra-prima de Kubrick sobre um
dos filmes mais vistos e mais badalados do ano, Gladiador (2000), de Ridley
Scott. O tributo do inglês Scott a Kubrick é grande; mas, com fazer uma narrativa
bonita, Scott faz tantas concessões ao gosto do público que suas possibilidades
autorais diminuem consideravelmente.
Por Eron Duarte
Fagundes (fevereiro/2001)