A Ferocidade de Kubrick

O roteiro era para ser filmado por Anthony Mann. Por desacertos com o produtor e astro principal do projeto, Kirk Douglas, tudo foi ter às mãos de Stanley Kubrick. Spartacus (1960), quarenta anos depois de sua realização, conserva sua modernidade e, mesmo assim, guarda vestígios de suas origens dúbias: trata-se de um épico em que sobressai o feitio hollywoodiano em alguns aspectos (aquela ternura melodramática do protagonista é por vezes algo tão pouco Kubrick), mas a narrativa revela-se autoral pela mão (artística) de ferro com que o cineasta dirige cada fotograma.

É verdade que Spartacus, rodado em cinesmacope, estará melhor desfrutado numa tela de cinema. Os detalhes brilhantes da fotografia e as magníficas estruturas cênicas de batalhas são mais bonitas e cheias de impacto no cinema. Ainda assim, o cinéfilo curioso não tem do que se queixar da oportunidade de vê-lo em DVD. Como ocorre com os filmes de cinemascope nas versões para a telinha, uma faixa preta em cima e outra embaixo devem ajudar a manter a horizontalidade da imagem.

De qualquer maneira, ver ou rever Spartacus agora em DVD permite ao observador retomar o contato com a obra de um maiores cineastas do mundo. Quando realizou este filme, a carreira de Kubrick começava a subir a rampa. Se o filme anterior de Kubrick, Glória feita de sangue (1958), tratava de maneira crítica o tema bélico, em Spartacus, um dos sub-temas é igualmente a guerra: uma guerra do mundo antigo, uma rebelião de escravos liderada pela personagem-título que provoca um confronto com o império romano e uma inevitável mortandade, como tantas outras na história em que os mais fortes destruíram os mais fracos; pela maneira como Kubrick expõe as pelejas, o caráter marginal dos escravos leva o observador de hoje, época brasileira de revoltas nas prisões, a ligar os companheiros de Spartacus aos apenados nacionais, o que só enriquece a visão histórica de Kubrick para além do tempo retratado. O mesmo furibundo intérprete Kirk Douglas de Glória feita de sangue retorna em Spartacus: ele encarna a revolta furiosa contra os fascistóides senadores romanos, de que a personagem de Marcus Licinius Crassus representa a liderança.

É da oposição entre Spartacus (o sonho libertário) e Crassus (o fascismo, a opressão) que Kubrick tira parte do fascínio de seu filme, pleno de momentos emocionantes. A cena em que Crassus ordena aos escravos derrotados que identifiquem Spartacus (seu corpo ou sua pessoa) e, um a um, todos vão levantando-se e exclamam, um de cada vez: "Eu sou Spartacus!", é um destes momentos; ali Kubrick, bem ao gosto do cinema crítico dos anos 60, reflexiona sobre a união dos oprimidos como única forma de resistência. Quando Crassus obriga Spartacus a lutar com seu parceiro Antoninus, e o escravo-protagonista mata o outro para evitar-lhe o sofrimento na cruz, eis outro lampejo de grandeza. Nenhum talvez supere a seqüência final quando a mulher de Spartacus, Larínia, vendo-o na cruz, apresenta-lhe o bebê, filho deles, e revela: "Spartacus, eis seu filho. Ele é livre!" A câmara extrai do rosto do ator, diante da revelação da mulher, um dos instantes máximos da interpretação cinematográfica.

Enfeixando este comentário, quero lembrar a influência da obra-prima de Kubrick sobre um dos filmes mais vistos e mais badalados do ano, Gladiador (2000), de Ridley Scott. O tributo do inglês Scott a Kubrick é grande; mas, com fazer uma narrativa bonita, Scott faz tantas concessões ao gosto do público que suas possibilidades autorais diminuem consideravelmente.  

Por Eron Duarte Fagundes (fevereiro/2001)