10 de dezembro de 2007
É surpreendente a maneira pessoal e refinada como a realizadora francesa Pascale Ferran inova a adaptação para o cinema de um romance muito conhecido. Lady Chatterley (2006), o filme de Ferran, partiu de uma das versões do livro, talvez a menos conhecida, Lady Chatterley e o homem do bosque; segundo uma anotação de Frieda Lawrence, a viúva do escritor inglês David Herbert Lawrence, um dos gênios da novelística do século XX, o autor escreveu três versões de seu livro e, tão diferentes entre si, que vinham a ser obras diferentes.
Detalhes da história literária à parte, a verdade é que Lady Chatterley, esta produção franco-belga-britânica, não é um daqueles trabalhos que sobrevive à sombra do mito do escritor: não se trata da ilustração visual de um texto da literatura. Sua inovação nasce do peculiar ritmo cinematográfico e desta sutil e abrasadora capacidade de estabelecer relações entre os cenários naturais e a natureza natural das personagens centrais que, comedida e pausadamente, se aproximam dos mais libertários e rústicos de seus desejos.
Acima de tudo, Lady Chatterley apresenta uma proposta de cinema bastante radical em sua ausência de concessão ao público. A estrutura dos cenários, a montagem vagarosa, os gestos sem pressa da câmara e dos atores, a obsessão por estender uma certa atmosfera fílmica criam uma linguagem a que o público já não está acostumado. Entre os filmes recentes, só Amantes constantes (2005), do também francês Philippe Garrel, segue esta linha de pesquisa visual onde a imagem parece contemplar a eternidade. O espectador que, inadvertidamente, por sugestão daquilo que de sexual a película possa ter, entrar no cinema, vai decepcionar-se: o homem vulgar não poderá gostar de um filme tão primorosamente concebido e executado. O romance de Lawrence já teve outras adaptações; algumas delas, como a do francês Just Jaeckin, O amante de Lady Chatterley (1981), com Sylvia Kristel e Nicholas Clay, usavam o texto de Lawrence como pretexto de um escândalo visual rasteiro; até a presença de Sylvia Kristel no elenco indicava no filme mais uma seqüência do primeiro e badalado trabalho de Jaeckin, Emmanuelle (1973), um daqueles filmes que a censura dos militares brasileiros transformou em estrela de opiniões. A obra de Pascale Ferran nada tem de comum com isto: é uma investigação única e antropológica sobre a natureza do desejo.
Esta investigação sobre o desejo é feita com extrema pudicícia. O desejo é detectado calmamente no espaço entre as personagens; longos planos lentos e minuciosos de observações naturais fazem a paixão sexual exacerbar. E mesmo depois, quando Constance e o guarda-caça transam, os gestos são vagarosos, pensados quase em excesso, leva-se muito tempo para tirar uma peça íntima, mas os atores não se despem inteiramente; só bem para o final é que surge um primeiro plano do pênis ou uma aproximação à vagina, até desabar naquele selvagem banho de chuva a dois nus.
Lady Chatterley utiliza letreiros narrativos, como no franco- suíço Jean-Luc Godard. Em alguns poucos momentos a voz-over duma mulher despeja palavras sobre as imagens, um pouco à maneira do francês François Truffaut. O texto mais longo duma voz-over feminina é aquele em que boa parte da seqüência aparece numa gravação em vídeo, imagem granulada, ruído da câmara no fundo sonoro. Numa seqüência posterior que é uma mistura de Godard (distanciamento literário) com Truffaut (emoção do verbo), uma mulher fala diretamente para a câmara em primeiro plano num fundo vazio. A narrativa termina abruptamente num longo diálogo entre os amantes sobre as possibilidades futuras do relacionamento; é outro dado que perturba o público de hoje, final repentino e no meio de um diálogo que não se conclui.
Profundamente belo em todos os seus signos narrativos, Lady Chatterley mostra a ousadia de uma cineasta que enfrenta uma história bem conhecida e dali emerge plena de criatividade.
Por
Eron Fagundes