A ESTRANHEZA DE UM FILME
 

 

28 de fevereiro de 2008

O norte-americano Tim Burton não é um cineasta que se enquadre facilmente nas amarras conceituais do cinema de Hollywood. Embora, ao mesmo tempo, sua aproximação ao gênero fantástico de filmar se alinhe mesmo dentro de certos requisitos hollywoodianos; seus delírios perversos não chegam a ter a textura do realizador polonês Roman Polanski.

Sweeney Todd: o barbeiro demoníaco da rua Fleet (Sweeney Todd: the demon barber of Fleet Street; 2007), seu atual e controvertido filme, pode estar à distância da densidade poética de Edward, mãos-de-tesoura (1990), seu principal trabalho, mas é uma realização fílmica que tem uma exigência estética um tanto quanto rara nas programações de cinema da cidade. De certa maneira incompreendido por algumas ousadias que ousam descaracterizar o rigor clássico de encenações de números musicais, Sweeney Todd é um vomitório visual escrachado e perturbador de Burton; filmado numa fotografia desbotada e chegando mesmo a um tom descolorido que mimetiza um preto-e-branco fosco e dúbio, o novo Burton é uma narrativa sombria, um pequeno e assustador e em muitos aspectos original circo de horrores edificado por um cineasta certamente dono dum estilo particular de filmar.

A história contada em Sweeney Todd pertence ao anedotário de realidade do universo londrino do século XIX; esta história foi inicialmente adaptada para os palcos da Broadway e agora caiu nas mãos de Burton, o cineasta dos pesadelos perversamente inocentes. Um barbeiro cuja filha foi seqüestrada por um juiz sedutor planeja vingar-se e passar na navalha  o pescoço do juiz; aliando-se a uma fabricante de tortas de carne, o barbeiro passa a degolar todos os seus clientes e, despejando os cadáveres em seu porão, fornecer às tortas de sua mulher a carne humana dos que freqüentam sua barbearia. A torta de carne humana vai ser, pois, comida pela comunidade londrina. O caso de canibalismo inconsciente duma coletividade (comem torta de carne humana sem o saber) se assemelha ao que ocorreu em Porto Alegre, na mesma época, quando o açougueiro José Ramos, também auxiliado por uma mulher (que, prostituindo-se, seduzia as pessoas, arrastando-as para os locais de assassinato), fez lingüiças de carne humana. O caso foi contado em livro pelo historiador gaúcho Décio Freitas e mais tarde romanceado em outro livro pelo jornalista David Coimbra. Em seu livro Décio anota que o naturalista inglês Charles Darwin teria feito apontamentos estupefatos ao saber o que ocorrera na longínqua Porto Alegre. É pena que Décio já faleceu; se não, seria de questionar por que Darwin atravessou com sua curiosidade (não fisicamente)  o Atlântico para sua pesquisa da bestialidade humana quando uma história de sua civilizada Londres estava ali à sua mão.

Por Eron Fagundes

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