11
de agosto de 2003
Pré-escrito:
Éramos sete espectadores no Unibanco Arteplex do Bourbon
Country interessados em ver ou rever o clássico filme de
François Truffaut. A cinefilia porto-alegrense terá
acabado, como afirmava desconsolado há sete anos meu amigo
Tuio Becker?
Numa
seqüência bastante significativa para a compreensão
das intenções de A noite americana
(La nuit americaine; 1973), que em boa hora torna aos cinemas
brasileiros, a voz-over de François Truffaut, realizador
do filme e ator central de sua própria narrativa em que
vive um diretor de cinema às voltas com o multifacetado
universo humano dos intérpretes cinematográficos,
aparece estabelecendo as desconexões entre os movimentos
harmoniosos do cinema e as perturbações e pedaços
mortos da vida. É um destes textos que correm pela imagem
sublinhando-a, tão ao gosto do cinema francês, tudo
construído à maneira sentimental de Truffaut; a
frase final da seqüência é uma exclamação
de exultante hino cinematográfico, como é o próprio
filme: “O cinema reina!” Reina sobre a vida, é
mais importante que a vida, parece querer dizer o cinéfilo-cineasta
Truffaut.
No
entanto, A noite americana, ao mostrar os percalços
que as vidas pessoais dos atores trazem à produção
de um filme, vai ao encontro de um contraponto ao pensamento de
cinefilia que perpassa a apaixonada descrição dos
set de filmagens elaborada em cada fotograma. Se o cinema reina,
ele não governa. Quem determina os rumos do cinema é
a própria vida: os envolvimentos emocionais dos atores
e, no fim, a própria morte dum ator vai determinar alterações
profundas na produção e no resultado fílmico.
A vida governa o cinema que reina na mente dos cinemaníacos.
A
noite americana é o filme de um cinéfilo.
Fala de cinema o tempo inteiro. Foi o italiano Federico Fellini
quem parece ter inaugurado tudo isto com Oito e meio
(1963). A homenagem a Fellini está na utilização
da atriz italiana Valentina Cortese, como uma intérprete
problemática e instável; Cortese, extraordinária,
perdeu em sua época o Oscar para um obscuro desempenho
da grande atriz sueca Ingrid Bergman, fato denunciado pela própria
autoconsciência da Bergman na cerimônia de entrega
da estatueta. As referências cinematográficas espalham-se
harmoniosamente em A noite americana: quando
a personagem do cineasta recebe uma encomenda de livros, a câmara
observa as capas e vemos os nomes de Rossellini, Lubitsch, Bergman,
Bresson, Hitchcock darem discretamente suas caras; o nome de Jean
Cocteau surge bordado num pano pendurado numa parede; Jean Vigo
é nome duma rua rapidamente revelado por dois breves planos.
Não se trata de exibicionismo de Truffaut: é a espontânea
fé amorosa no cinema que impulsiona estas citações.
Truffaut
revela habilmente como ele, realizador de filmes, logra controlar
o descontrolado universo humano de que se cerca um filme. A noção
de controle cinematográfico é muito cara ao conceito
de cinema de Truffaut, talvez o mais clássico dos diretores
da “nouvelle vague”. Ao analisar A um passo
da liberdade (1960), de Jacques Becker, o Truffaut-crítico-de-cinema
anota: “A noção de controle me parece importante.
Um filme não precisa necessariamente ser dominado pelo
diretor, pode até dominá-lo por alguns instantes,
jogo de amor sutil, mas o trabalho tem que ser controlado e particularmente
a duração.” Este controle de tempo cinematográfico,
que provoca a harmonia narrativa de elementos vitalmente desarmônicos,
se evidencia em A noite americana.
Outro
dado que em seu tempo foi incompreendido e hoje parece crescer
de importância é a presença cênica de
Truffaut-ator, em que seu desempenho corresponde ao jeito terno
de sua direção. Truffaut foi ator de outros dois
filmes seus: na obra-prima O garoto selvagem
(1970) e no pouco comentado O quarto verde (1978),
um claustrofóbico e mórbido Truffaut extraído
da ficção de Henry James. Truffaut foi igualmente
convocado para o elenco de Contatos imediatos do terceiro
grau (1977), ao que se diz para ajudar o diretor americano
Steven Spielberg a dirigir as muitas crianças em cena,
uma vez que esta era uma das habilidades mais estimadas de Truffaut,
extrair belíssimos desempenhos infantis. Na verdade, como
o observador pode aprender em A noite americana,
Truffaut foi um dos mais rigorosos e sensíveis diretores
de atores que o cinema conheceu.
Por Eron Fagundes
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