23
de julho de 2003
Quando
se aposentou do jornalismo cinematográfico, que executara
com brilho incomum ao longo dos anos, em 2001, o crítico
gaúcho de cinema Tuio Becker me disse uma frase curiosa:
“nunca mais, desenho animado!” Isto certamente significava
que a animação cinematográfica por via de
regra estava associada a aborrecimento na cabeça de Tuio;
o grande analista de filmes só via animações
por obrigação profissional, necessidade jornalística
de opinar sobre tudo o que os cinemas exibiam. Um dia destes,
numa sessão do Clube de Cinema, lá estava Tuio para
ver o medíocre Procurando Nemo (2003),
de Andrew Stanton e Lee Unkrich; se Ingmar Bergman não
tem cumprido a promessa de abandonar o trabalho e aquietar-se
em sua ilha como alardeou faz vinte e um anos, Tuio igualmente
não é obrigado a cumprir o que disse num momento
de descontração pós-aposentadoria.
É
bom que assim seja, pois aparecem as surpresas. O desenho japonês
A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kanikakushi;
2001), de Hayo Miyazaki, recupera a dignidade e a inteligência
do gênero, fazendo com que se esqueça toda a futilidade
e os lugares-comuns adotados por algo como Procurando
Nemo. Miyazaki abdica dos fricotes tecnológicos
da atualidade para, por meio de imagens de raro senso cinematográfico,
atingir uma beleza plástica que nunca deixará de
encantar o espectador mais afinado com sensibilidades elaboradas.
A
viagem de Chihiro trafega entre a realidade e o sonho
com espantosa naturalidade. A partir do momento em que os pais
da garotinha Chihiro pegam um atalho e desviam-se do caminho,
este é um atalho para a imaginação e toda
a fantasia (sombria e surrealista, é verdade) é
possível, pois tudo se passa na mente da pequena protagonista.
O filme segue a estrutura livre de um sonho, como poderia vir
a ser a de qualquer filme, sonhar no escuro dos cinemas de olhos
abertos; as excentricidades das imagens amontoam-se, obedecendo
a um ritmo narrativo íntimo e subjetivo. Os pais da menina,
de tanto comerem, viram porcos. Os mais estranhos seres aparecem
em cena. Há um trem que anda por mar e terra, solitário,
cruzando os cenários da narrativa. Chihiro sente-se solitária
e opressiva diante dos monstros que estão à sua
volta: apartada dos pais, ela é esmagada por seus excessos
de imaginação, algo capturado com brilho pelo filme;
vemo-la de serviçal dos opressores de sua mente, seres
excêntricos de toda ordem. Até que a fantasia se
desmancha e volta a “livre” realidade. Chihiro olha
para trás, para a estrada de que ela e seus pais saem:
sonhou? imaginou? que diabo foi isso? Nem tudo tem explicação
racional nas imagens criadas pelo filme: como num sonho, há
coisas meio secretas, que mais parecem captações
de sentimentos do que mensagens lineares. Sim: A viagem
de Chihiro adota certos conceitos experimentais de filmar;
mas mesmo em seus instantes mais obscuros é bonito de ver.
Em
suma, creio que A viagem de Chihiro mereceria
que Tuio Becker revisasse nosso habitual preconceito contra os
desenhos animados. Está próximo duma obra-prima,
se é que o futuro não o chamará assim. O
que pode estorvar sua plena fruição é uma
certa aridez oriental a que o observador brasileiro não
está habituado; vencidas estas asperezas, o deslumbramento
se impõe.
Por Eron Fagundes
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