22
de março de 2004
O cinema
americano tem dessas coisas. Alguém tem que ceder (Something’s
gotta give; 2003), filme realizado por Nancy Meyers, é extremamente
previsível e até insosso em suas tiradas cômico-românticas:
Hollywood exacerba na superficialidade, nos trejeitos repetitivos,
na maneira americaníssima de conquistar o mercado. Mas
o resultado final da narrativa de Meyers contraria a expectativa
de um espetáculo babaca e sem sal; valendo-se dos mesmos
truques de tantos outros produtos da indústria ianque
(bons atores, charmosos movimentos de câmara, agilidade
de montagem), o filme acaba por penetrar parcelas mais sensíveis
do espectador que ao cabo se revela um fraco diante da magia
fácil da linguagem que ali se impõe.
A
surpresa de Alguém tem que ceder vem deste paradoxo:
como uma comédia romântica já vista tantas
vezes pode apresentar-se como alguma coisa capaz de sacudir a
emoção do espectador, ainda que esta emoção
não salte muito acima do solo?
Jack
Nicholson e Diane Keaton, os veteranos de Hollywood que vivem
os idosos que se apaixonam, estão em momentos tragicômicos
no pico. Diane, especialmente, confere à velhice de seu
corpo um brilho de olhar que é a própria criatividade
de sua expressão como intérprete, evocando seus
grandes anos de atriz, aqueles da década de 70 e de seu
casamento com o ator e diretor norte-americano Woody Allen. As
sutilezas interpretativas de Diane fazem realçar a contrastante
relação que o filme quer expor, entre o corpo e
o cérebro, dando à narrativa uma inquietação
inusitada para o formalismo comercial em que está embutida.
Equilibrando-se
entre o riso e o choro, sem temer o patético
como nas cenas em que Diane Keaton chora ao mesmo tempo em que
está escrevendo a peça de sua vida (de sua vida=
sua melhor peça e também a peça sobre suas
experiências de vida), Alguém tem que ceder evoca-me
um texto do prosador luso-brasileiro Antônio Vieira, As
lágrimas de Heráclito (1709), utilizado
pelo cineasta português Manoel de Oliveira em sua obra-prima Palavra
e utopia (2000): “Em seu lugar apareceu o pranto, porque
segue e vem depois do riso.” Diane Keaton chora enquanto
compõe no computador a peça de sua vida, mas seu
choro aqui e ali se transforma em riso: o espectador ri dela,
sem embargo de se sensibilizar com suas amarguras de vida.
Basicamente
um filme de interpretações, Alguém
tem que ceder conta com outra grande atriz americana, Frances
McDormand, que vive a irmã da personagem de Diane. Pode-se
repugnar no filme um certo artificialismo de soluções
de roteiro; mas o jogo da diretora é este mesmo, não
dispensar nem ocultar o artificial em cena.
Por Eron Fagundes
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