A INTERMINÁVEL REVOLUÇÃO
 

 

10 de outubro de 2007

Philippe Garrel é um cineasta francês habitualmente amado pela crítica e detestado pelo grande público. Seu primeiro filme lançado no Brasil, Amantes constantes (Les amants réguliers; 2005), está reeditando entre nós esta experiência cinematográfica: a democracia crítica da Internet permite observar como críticos conceituados que defendem o filme são xingados por outros espectadores, que se queixam da pose destes intelectuais para com um filme “tão arrastado e tão aborrecido”. No fundo, sobram razões para todos os lados: o filme é para cinéfilo, aquele ser estranho capaz de entender um estilo de filmar aparentemente vazio e desinteressado da trama que foi saindo de moda depois que o italiano Michelangelo Antonioni atingiu o ápice em sua trilogia da incomunicabilidade. Amantes constantes é um retorno aos métodos estilísticos do cinema intelectual europeu dos anos 60; tudo se desenrola diante das câmaras de maneira muito desdramática, uma coleção de episódios que se vai revelando interminável, planos lentos que não se preocupam em montar uma narrativa de cinema mas em criar uma atmosfera, no caso uma atmosfera que captura o que foi, na visão do diretor, que era um jovem de vinte anos então, maio de 1968 em Paris, França. O filme não tem um fim: tem um desenvolvimento de imagens, uma estrutura de rosácea onde os planos são pétalas independentes que adquirem seu sentido no conjunto visual (a sensação de flutuação de que fala Garrel para buscar uma identificação para seus trabalhos);  o filme terminou num determinado ponto, depois de três horas de projeção, mas poderia ir além, continuar desenvolvendo os planos de acordo com sua estética, alguns (muitos) continuariam a considerar excessiva a metragem (duas horas, três horas, quatro horas ou mais, sempre difícil para o espectador comercial), outros (poucos) seguiriam hipnotizados pelas construções de Garrel. Anos 60: os filmes terminavam muitas vezes de repente, sem quê nem por quê. Termina-se um filme porque é preciso dispensar o espectador: mas não se pode filmar como escrevem Balzac ou Proust, interminavelmente? Afinal, a revolução de que trata o filme de Garrel é também interminável.

Numa cena de Amantes constantes a personagem de Clotilde Hesme pergunta a um interlocutor, um pintor, se ele já viu o filme Antes da revolução (1964). No outro plano, um primeiro plano do rosto de Clotilde, a personagem se dirige para a câmara, como falando com o espectador: “Bernardo Bertolucci”. É uma homenagem, claro, mas é um recurso citatório desdramático que poderia lembrar Jean-Luc Godard, que era mais ostensivo nestas citações e nestes diálogos com a platéia. (Mas Garrel não chega a ser tão secreto e sutil quanto o italiano Valério Zurlini que, em A primeira noite de tranqüilidade, numa seqüência breve e natural, refere, sem citar diretamente, um antigo filme de Roberto Rossellini, a partir da imagem-citação do livro de Stendhal que gerou o filme de Rossellini). Há uma outra cena em que a mesma Clotilde, também um primeiro plano direto para o espectador, fala da solidão no coração dos homens, como se fosse uma citação duma frase famosa: ao contrário da cena de Bertolucci, não é referida a possível origem da citação e ficamos pensando que a frase talvez seja do próprio roteiro de Garrel.

Depois do aparecimento de Amantes constantes, muitos admiradores do trabalho de Garrel aplicaram uma revisão cruel de Os sonhadores (2003), o filme de Bernardo Bertolucci que igualmente evocava maio de 1968. Diz-se que os filtros de Bertolucci impedem a autenticidade que vemos em Amantes constantes. Bertolucci ainda delira com as drogas e o sexo de 1968, e estes elementos servem ao sentido do trágico que sempre esteve na câmara do cineasta italiano. Amantes constantes vai para o lado oposto: suas sessões de ópio são documentais e ele elimina inteiramente a curiosidade visual da câmara; o sexo desaparece de cena, como na maioria dos filmes do francês Eric Rohmer. Para acentuar as comparações, Louis Garrel, filho de Philippe, foi o astro de Os sonhadores e está em Amantes constantes, que ainda inclui a participação do ator Maurice Garrel, pai do cineasta francês.

O platonismo de Amantes constantes e sua recusa em fazer concessões ao gosto do público são dados que incluem a realização de Garrel entre as experiências gratificantes do ano cinematográfico.

P.S.1: Destaque para a fotografia em preto-e-branco de William Lubtchansky. Trata-se de um preto-e-branco metafísico, áspero, que resiste às facilidades plásticas do cinema, embora não deixe de induzir a uma certa plástica cinematográfica. Não é o preto-e-branco nostálgico e sonhador de Manhattan (1979), de Woody Allen. A forma da fotografia reforça os “pudores realistas” do cinema de Garrel. O primeiro filme do realizador data de 1964 e é Les enfants désacordés.

P.S.2: Entre as referências literárias, a principal me parece ser a que o “poeta pálido” vivido por Louis Garrel se refere a Alfred de Musset (1810-1857) para sua namorada. De fato: ao longo do filme, o “garoto poetinha” se afigura mesmo uma reencarnação de Musset, anacronicamente romântico no seio da revolução. Assim como o próprio filme, que é um salutar anacronismo no meio do cinema do século XXI. Resta  saber se se pode descobrir alguma coisa da romancista francesa George Sand, amante de Musset por vários anos intermitentes do século XIX, na figura da “amante platônica” do poetinha de Garrel.

Por Eron Fagundes

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