27
de outubro de 2003
As
primeiras imagens de Amarelo manga (2002), filme brasileiro realizado
pelo pernambucano Cláudio Assis, acompanham o acordar
duma jovem dona de bar; ela levanta-se da cama nua como dormiu,
arruma-se, ajeita seu cenário, abre as portas de seu estabelecimento,
depois aparece sua voz (primeiro off, depois in) em que ela se
queixa asperamente da rotina e da falta de perspectiva de sua
vida. No fim da narrativa parte da cena é repetida: a
personagem abre as portas de seu bar, coloca-se numa determinada
posição do cenário para que sua voz (primeiro
off, depois in) passe a criticar a miséria da rotina.
Esta criatura irreverente e forte dentro das fraquezas de sua
circunstância vai dar significado ao apanhado de vidas
suburbanas, periféricas, sujas sem perspectiva que Assis
busca retratar de maneira extremamente desglamurizada.
As
características desbotadas de crônica de subúrbio
adotadas por Amarelo manga já estão na própria
fotografia assinada por Walter Carvalho, um dos mais constantes
profissionais da luz na atual quadra do cinema brasileiro. Sem
artificialismos, o fotógrafo Carvalho atinge um realismo
visual que corresponde inteiramente às pequenas vidas
alinhadas pelo roteiro como um panorama de um subúrbio
brasileiro; a despeito de algumas diferenças epidérmicas,
o pobre tipo suburbano nacional visto em Recife, onde se passa
o filme, não difere muito do que se vê aqui no Sul,
daí ser relativamente fácil uma identificação
do espectador gaúcho que anda pelas ruas de Porto Alegre.
O
principal veio formal de Amarelo manga é esta câmara
que se gruda à pele da personagem, os planos são
sempre muito próximos dos atores, os movimentos estão
no encalço dos gestos que o elenco vai fazendo. De certa
maneira, nos filmes dos irmãos belgas Luc e Jean-Pierre
Dardenne acontece a mesma coisa, o plano se fecha opressivamente
sobre as pessoas; mas se nos belgas um formalismo maneirista
oprime muito da potência narrativa, na realização
brasileira este trunfo estilístico adquire uma dimensão
humana e social que torna o jeito de filmar não tão
gratuito.
Creio
que Amarelo manga resgata um certo realismo cinematográfico
que o cinema brasileiro abandonou há muitos anos e que
a memória pode repescar em obras-primas como Rio,
40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, e Chuvas
de verão (1978), de Carlos Diegues. No trabalho de Assis, como nos de
Nelson e de Diegues, o roteiro reúne personagens verazes
e marcantes que oferecem ao observador uma visão de um
Brasil que vive nas sombras, escondido para lá dos centros
comerciais e dos cenários de luxo. A miserável
pensão e o bar de bêbados de Amarelo manga são
o contraponto desglamurizado de nossa realidade. Pode ser difícil
engolir, mas é necessário.
Não há propriamente violência ou provocação
em Amarelo manga. O que há é um jeito extraordinariamente
sem rebuços de falar da ausência de perspectiva
de boa parte da população brasileira. É isto
que parece chocar os olhos glamurizados do espectador habitual:
trata-se de um raro filme que em momento algum paparica aquele
assistente educado por Hollywood e seus derivados. A vagina da
gaúcha Leona Cavalli mostrada em primeiro plano para o
observador e para Jonas Bloch e o pedaço de orelha que
Dira Paes arranca a dentadas da amante da personagem de Chico
Diaz, seu marido no filme, são elementos que se encaixam
admiravelmente na costura narrativa. Assis tem em mãos
um roteiro bem estruturado, uma fotografia adequada, atores em
ponto de bala e realiza um dos mais belos filmes nacionais da
temporada.
Por Eron Fagundes
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