AMÉM PARA OS PODEROSOS
eron@dvdmagazine.com.br

17 de novembro de 2003

Mexer com as convicções religiosas das pessoas sempre provocou reações exageradas contra os realizadores de filmes. O norte-americano Martin Scorsese fez uma narrativa até suave em A última tentação de Cristo (1988), mas sua radical humanização da figura de Jesus foi tida por herética. Pela mesma época, o francês Claude Chabrol punha na boca da atriz Isabelle Huppert uma Ave-Maria incrivelmente blasfema em Um assunto de mulheres (1988), deixando os admiradores católicos de Chabrol meio constrangidos entre sua fé e a paixão pelo cinema. Jean-Luc Godard viu seu Je vous salue Marie (1985) execrado em vários países graças à violência crítica do cineasta contra os símbolos religiosos; no Brasil, mesmo num tempo de abertura política, em que se decretara oficialmente a morte da censura, a Igreja logrou impedir sua exibição e a realização chegou a circular por aqui numa versão em vídeo muito antes de se abrandarem os ânimos e permitirem sua entrada nas salas de cinema. É claro que o atual filme brasileiro Maria, mãe do filho de Deus (2003), de Moacyr Góes, deverá estar à margem das discussões mais sérias, pois sua incompetência o impedirá.

Amém (Amen; 2002) talvez seja o melhor trabalho do greco-francês Constantin Costa-Gavras desde Muito mais que um crime (1990). Com o poder de fogo crítico de sempre e revelando suas habilidades de narrador cinematográfico, que tiveram seu apogeu em Z (1968) e Desaparecido, um grande mistério (1982), Gavras mergulha agora nas relações entre o Vaticano e o nazismo, mostrando a covardia da Igreja sempre que teve de enfrentar os poderosos. A consciência do filme é levada pelo jesuíta interpretado com grande interioridade e sobriedade pelo ator e realizador francês Mathieu Kassovitz; parente do Papa, ele busca, debalde, fazer com que o Sumo Pontífice declare publicamente seu repúdio à perseguição nazista aos judeus, baseando-se num testemunho dum oficial da SS; ao acompanhar a partida de um trem com judeus para um campo de concentração, o padre é embarcado ali por equívoco e ao chegar ao destino depara com as coisas de que só ouvira falar, aguçando ainda mais sua verdadeira alma cristã que vê “os filhos de Deus serem devorados” impiedosamente. Há um pouco de reviver a autenticidade de Cristo nesta personagem de Kassovitz.

Gavras manipula seu tema com seu charme habitual. O terror sombrio dos nazistas, a pompa do Vaticano, os trens que cruzam intersticialmente pela narrativa – tudo é conduzido com mão de mestre pelo cineasta. Amém poderá receber as reservas que alguns fizeram a outro dos destaques da temporada de cinema em Porto Alegre, O pianista (2002), do polonês Roman Polansky: coisas de que todo o mundo sabe, temas e formas anacrônicos numa época tão pouco política como a nossa. Mas é conversa fiada: são assuntos de sempre que, vencido o século, não podem ser esquecidos. As formas narrativas utilizadas por Gavras e Polansky são as pessoais de seus realizadores: não há confundi-los com os tratamentos dados por outros.

Se a conclusão do filme de que o Vaticano sempre deu amém aos poderosos é óbvia, a emoção despertada pela realização não é nada óbvia. Como curiosidade final é bom observar que a nervura dramática de Amém (discutir a associação da Igreja Católica com o nazismo) é um sub-tema que aparece num recorte-relâmpago duma seqüência de As invasões bárbaras (2003), do canadense Denys Arcand: Remy, o doante terminal de Arcand, vitupera num cenário de hospital contra uma enfermeira católica, assacando diatribes contra a Igreja, taxando-a de conivente com o nazismo, citando a prisão do escritor italiano Primo Levy nos campos de concentração (um livro de Levy aparecerá num primeiro plano no fim do filme). Enfim, são assuntos graves que nunca devem ser esquecidos. Ainda bem que há cineastas críticos como Gavras e Arcand para sempre recolocá-los em hábeis questões cinematográficas.

Por Eron Fagundes