30 de agosto de 2006
Há uma grande carga de veracidade em Anjos do sol (2006), filme dirigido pelo gaúcho radicado no Rio Rudi Lagemann; esta veracidade é tão colada ao celulóide que muitas vezes a narrativa da realização se abeira de um documentário. Sabe-se que Lagemann utilizou informações de jornais para compor este autêntico painel da prostituição infantil no Brasil; mas como cineasta ele foi mais além, dirigindo com sensibilidade suas pequenas atrizes e compondo os retratos de cafetões, intermediários e prostitutas mirins como se tivesse tido antes um laboratório com as figuras reais de cafetões, intermediários e prostitutas mirins. A pequena Fernanda Carvalho na pele da protagonista Maria e suas companheiras (um destaque especial para Bianca Comparato, que vive uma rebeldezinha e morre arrastada pelo jipe do patrão depois duma tentativa de fuga numa cena dura e comovente quando a câmara gira em torno de seu rosto primeiro impassível, depois rompendo num choro desesperado e meio profético) parecem as próprias garotas perdidas do interiorzação brasileiro; atores da estirpe de Otávio Augusto e Antonio Caloni constroem seus tipos cafajestes com um senso de realismo verdadeiramente estarrecedor.
O cheiro de realidade de Anjos do sol perfura as imagens e exala dos diálogos, como se o espectador estivesse dentro daquele bordel onde as meninas vendem não somente seus corpos mas ainda seus sonhos; a crueza das palavras despejadas pela inocência cedo ultrajada é um confronto áspero mas necessário, mesmo que a sensibilidade de alguns queira ocultar esta autêntica constatação cinematográfica. Expondo-se um pouco como um desglamurizado filme de estrada pelo interior do país, Anjos do sol poderia evocar Iracema, uma transa amazônica (1974), de Jorge Bodansky e Orlando Senna, onde a protagonista se prostituía pelos diversos cenários brasileiros; se a Iracema de Bodansky desmistificava o mito da Iracema-virgem-dos-lábios-de-mel do romancista cearense do século XIX José de Alencar, a Maria de Lagemann e Fernanda entorta muito a possível pureza bíblica de seu nome.
Aprisionadas numa clareira da selva nordestina onde o cínico e furioso Saraiva (Caloni) instalou seu bordel de crianças, as meninas são mesmo as perdidas da infância brasileira. Anjos do sol é um retrato de nossas mazelas e junta-se aos recentes O sol: caminhando contra o vento (2005), de Tetê Moraes e Martha Alencar, e Intervalo clandestino (2006), de Erik Rocha, para provar que nem tudo é anemia em nosso cinema: há saídas formais e temáticas de rara densidade e criatividade.
Depois de várias tentativas de buscar uma vida fora da prostituição (ela vai parar no Rio de Janeiro, na mão duma bonachona cafetina da cidade, mas foge para a estrada), Maria vai descobrir definitivamente, ao subir a um caminhão para pedir carona, que a miséria a empurrará sempre para a vida de que quer (e não consegue) escapar; este último plano, a garota à porta dum caminhão pedindo carona a um motorista cuja face não se vê, o breve diálogo em que o homem dá de maneira direta sua condição de fornecer a carona, fecha o círculo impossível daquelas perdidinhas que um dia foram vendidas pelos pais que não tinham como sustentá-las. Anjos do sol é um olhar clarividente sobre esta realidade.
Por
Eron Fagundes