15 de novembro de 2006
O signo do futebol surge na primeira cena de O ano em que meus pais saíram de férias (2006), filme brasileiro de Cao Hamburger, quando vemos um garoto jogando futebol de botão e a voz-over do menino (narrador do filme) lembra que seu pai sempre lhe dizia que o goleiro é o único que não pode errar; esta lembrança do dito do pai vai invadir as imagens finais da película, quando o pequeno protagonista, passada a Copa do Mundo de Futebol de 1970, se arvora em arqueiro, pensando se seu pai sabia que um dia seu filho seria goleiro. O goleiro é a mais solitária das personagens de um time de futebol, e também a mais “filosófica” das posições de uma equipe (não é por acaso que o pensador francês Albert Camus palmilhou uma adolescência de goleiro nos desolados campos da Argélia de sua juventude); com muita sensibilidade, Cao Hamburger faz de um pequeno arqueiro de futebol o holofote da visão de seu filme para uma difícil quadra histórica da vida brasileira (não deixo de meditar no metafísico goleiro que está no centro de um dos filmes iniciais do alemão Wim Wenders, tão diferente de uma personagem de goleiro segundo Hamburger).
1970. O Brasil inteiro (não somente os jogadores, cartolas e comissão técnica) preparava-se para a Copa do Mundo de Futebol nos gramados mexicanos. Enquanto a festa do esporte bretão corria ao sol, nas sombras perversas um filme de terror político era rodado. Cao Hamburger lida com extrema sutileza com estes dois temas recorrentes, o futebol e a repressão. Ao menos desde Rio, 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, o cinema brasileiro tem-se voltado aqui e ali para o mundo do futebol, uma espécie de marca genética de nosso povo; o olhar cinematográfico muitas vezes tem sido festivo e superficial, mas Cao põe uma paixão ao mesmo tempo estética e antropológica na maneira com que estabelece as ligações do futebol com o restante da vida em seu filme; ao inserir o futebol em sua história, Cao não perde o fio condutor, articula sua montagem com uma riqueza de detalhes de época que emociona pela precisão de suas reconstituições (os encontros nos bares para assistir aos jogos à noitinha, os álbuns de jogadores futebolísticos, as manifestações de rua, os grêmios estudantis, os escusos corredores de prédios de apartamentos).
O senso de cinema de Cao Hamburger atinge talvez, em O ano em que meus pais saíram de férias, seu ponto mais elaborado. Diversamente de filmes como Crônica de uma fuga (2006), do uruguaio-argentino Israel Adrián Caetano, e de Zuzu Angel (2006), do brasileiro Sérgio Rezende, o filme de Hamburger prefere utilizar amiúde uma espécie de subtexto da imagem para falar da repressão política no país; se Caetano e Rezende incorrem no já visto que incomoda o observador, Hamburger vai semeando, com meias imagens, ou entre-imagens, ou alusões sutis, uma densidade humana que escapou a Caetano e Rezende. A visão provocativamente inocente do garoto que faz de conta acreditar que seus pais saíram de férias enquanto deixam o filho com o avô que vem a falecer antes de recepcionar o neto (que é acolhido pelos vizinhos judeus) assemelha-se à de Quando papai saiu em viagem de negócios (1985), do iugoslavo Emir Kusturica, onde também as referências a um regime totalitário são veladas e distanciadas. Esta situação de subtexto para falar de tempos árduos remete a outro filme brasileiro, Nunca fomos tão felizes (1984), de Murilo Salles, em que a política (nunca aludida diretamente) também se interpunha entre um pai (meio mito, meio verdade) e um filho (um pouco confuso, um pouco em busca do pai).
Valendo-se de primorosos segundos planos fora de foco, conduzindo com habilidade seus atores e os diálogos (o casal de intérpretes infantis central é um exemplo da clareza diretiva de Hamburger), Cao Hamburger faz de O ano em que meus pais saíram de férias um dos trunfos do atual cinema brasileiro.
P.S.: Com muita nostalgia para quem viveu aqueles tempos e se interessava por futebol, o filme de Cao Hamburger aborda algumas questões “essenciais” da vida brasileira de então, o que reforça as minúcias de reconstituição de época elaborada pelo cineasta: 1 – se Pelé e Tostão, que ocupavam posições idênticas no campo de jogo, poderiam jogar juntos, se o estar-juntos na equipe destes dois craques não poderia embaralhar o sistema tático; 2 – a queda de João Saldanha, substituído por Zagalo como técnico da seleção brasileira, se deveu a atos futebolísticos ou a fatos políticos, como o “boato” de que Saldanha simpatizava com o comunismo? Eu, tão garoto na época quanto o protagonista do filme, descobrindo o mundo e o futebol e ignorante da vida social que me circulava e determinava, agradeço a Cao a evocação destas lembranças.
Por
Eron Fagundes