06
de setembro de
2004
Um
gibi voltado para o cotidiano, como certos filmes franceses ou
as películas neo-realistas de Vittorio de Sica. Um gibi
político, que trate de temas incômodos e provocativos.
Parece estranho. Mas é isto o que propõe, já a
partir da boca de suas criaturas, o filme Anti-herói americano (American splendor; 2003), dirigido a quatro mãos por
Shair Springer Berman e Robert Pulcini tomando por base a produção
em quadrinhos de Harvey Pekar, autor e personagem de histórias
minimalistas desenhadas por Robert Crumb em revistinhas underground.
Pekar, na pele do ator Paul Giamatti, traça seu objetivo
a certa altura: um gibi do cotidiano, como fazem certos diretores
de cinema franceses e o fez De Sica em seus melhores anos. Sua
mulher Joyce Brabner levanta a inesperada hipótese dum
gibi político. No início do filme o próprio
Pekar, filmado documentalmente pelos realizadores, afirma que
seu universo não trata de escapismo, mas da vida real:
quem está em busca de ilusão, dirija-se a outro
filme. Estamos, pois, diante de um anti-herói, o mais
desglamurizado dos seres que, nascendo dos quadrinhos, chegaram
aos cinemas. Talvez seja um dos poucos que justifique mesmo a
admiração de um intelectual como o cineasta francês
Alain Resnais pelos quadrinhos; ou estarei sendo radical e mal-humorado,
como o próprio Pekar?
Na
verdade, Anti-herói americano é um admirável
ponto de intersecção entre várias linguagens
narrativas. Como filme, propõe uma reencenação
por atores do universo de Pekar e uma reflexão sobre as
possibilidades do cinema quando se alia aos quadrinhos. Há também
o aspecto de registro documental ao valer-se do próprio
Pekar para fazer alternar a visão da pessoa real (visão
dele que vê o mundo e visão que é vista pelo
observador) com sua reconstituição cênica.
Além do peculiar desenho dos enquadramentos e de sua maneira
de montar, os realizadores utilizam imagens dos quadrinhos que
surgem assim como gravuras significativas daquilo que o filme
vai expondo. E, espantosamente, é inserido um trecho duma
montagem teatral em que os atores do filme vêem outros
atores caracterizarem as personagens e certas cenas (como a do
primeiro encontro sexual dos dois em que Joyce passou mal e vomitou
no vaso sanitário) já anteriormente encenadas pela
fita. Sem desfazer na habilidade cinematográfica dos cineastas, é um
daqueles filmes em que a personagem (o autor dos quadrinhos e
sua personagem alter-ego) é tão autor quanto os
que fazem o filme: não é também esta uma
característica do documentário, onde o assunto
se converte em linguagem e autor? Mas é com simplicidade
que estas teias narrativas se agrupam em Anti-herói americano.
Num
tempo em que o humor americano está restrito às
auto-ironias repetitivas de Woody Allen e ao chafurdar no comercialismo
dos irmãos Coen (a despeito das qualidades autorais que
estes dois nomes possam significar), a áspera perversidade
irônica desta realização de Berman e Pulcini
(e ainda de Pekar) vem injetar um sopro de novidade e frescor
na comédia estadunidense.
Por Eron Fagundes
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