07
de outubro de 2003
O ator-diretor
carioca Hugo Carvana tem rodado filmes para o público
a que nem sempre, em anos recentes, o público tem comparecido.
Em O homem nu (1997), extraído dum texto do autor mineiro
Fernando Sabino, a paparicação de Carvana para
a platéia não chegou às bilheterias: a sensibilidade
carioca de Carvana parecia um pouco fora de moda aos olhos do
espectador do fim do milênio.
Agora
me parece que Apolônio Brasil, campeão da
alegria (2003) atinge o melhor momento da atividade de Carvana
como diretor de cinema. Provavelmente estará longe de
repetir o sucesso comercial do primeiro trabalho dirigido pelo
cineasta. Ali estão os mesmos ingredientes com que Carvana
sabe lidar muito bem: a malandragem da noite carioca, a simpatia
das interpretações, uma seleção musical
de arrepiar a epiderme do ouvinte-espectador e uma paixão
de filmar que lhe permite manter bem o ritmo da estrutura semimusical
de seu filme.
Porém há algumas coisas que elevam a narrativa
do novo filme de Carvana a um patamar um pouco superior ao que
ele até agora tem logrado. À maneira de Orson Welles
em Cidadão Kane (1941), Francesco Rosi em O
bandido Giuliano (1962) e de Geraldo Sarno em Coronel
Delmiro Gouveia (1977),
Carvana vai colocar diante das câmaras o retrato duma personagem
a partir dos depoimentos de indivíduos que a conheceram; é evidente
que falta a Carvana a transcendência estética ou
política dos filmes aludidos, e ele permanece, visual
e tematicamente, em sua agradável superficialidade carioca,
mas sobra-lhe energia para expor a vida apaixonante de um sonhador
que, como aqueles idosos do filme uruguaio Coração
de fogo (2002), de Diego Arsuaga, vai em busca dos sonhos de
sua vida nunca se deixando morrer, segundo a frase que cita em
cena e é atribuída ao escritor espanhol Miguel
de Cervantes. Outro trunfo que alça Apolônio Brasil acima de seus próprios limites é a interpretação
maravilhosa de Marco Nanini no papel-título: a cena em
que a personagem morre, debruçada e tocando ao piano,
batendo esplendorosamente na tela por alguns instantes mágicos,
flutua de maneira angelical e resgata o filme de suas debilidades.
Nostálgico, elegíaco, o filme de Hugo Carvana mostra
a força duma personagem cuja ternura é mais profunda
que os acordes meio fáceis da linguagem cinematográfica
de Carvana e cujo ímpeto onírico é mais
dionisíaco do que a proposta estética da narrativa.
Há cenas divertidíssimas, como a do general (ou
major) da época da ditadura que irrompe numa festa dos
jovens dos anos 60 (Jonas Bloch caracteriza com brilho este esquisito
este militar). Paulo José tem uma aparição
especial cantando e ouvindo Apolônio ao lado de Marcos
Paulo na noite final (a morte) da carreira do boêmio mulherengo
carioca retratado em Apolônio Brasil. Hugo Carvana, como
ocorria em O homem nu, em que ele era o motorista de táxi
do fim do filme, torna a colocar-se ao cabo da narrativa, vivendo
um mendigo que disputa com as outras personagens o cérebro
apolíneo de Apolônio (é claro que as motivações
do mendigo são imediatamente alimentares; comer os miolos).
E José Lewgoy, como o professor que quer clonar o cérebro
da alegria, dá seu último recado cinematográfico:
depois morreria.
Por Eron Fagundes
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