A CÂMARA SOLTA
PARA PERSONAGENS APRISIONADAS
Os créditos desfilam
sobre um fundo preto, enquanto os ouvidos do espectador distinguem vozes circundantes
e logo gemidos que se vão tornando cada vez mais gritados e doridos. No final
do plano uma mulher exclama, em off: "É uma menina!" Este é o início de O
círculo (Dayereh; 2000), filme iraniano de Jafar Panahi que busca discutir
claramente a condição da mulher numa sociedade medieval como a do Irã. Terminada
a apresentação dos créditos iniciais, a imagem esbranquiçada logo se aclara,
observamos o ambiente da maternidade a partir duma pequena janela que encima
uma porta de ferro.
Uma prostituta presa é jogada
para dentro duma cela. O plano fixo sobre a personagem desfaz-se e surge uma
panorâmica que acompanha as demais mulheres deste cárcere. O lento movimento
de câmara vai deter-se numa janela que encima uma porta de ferro, e por esta
janela o observador vê o que se passa do lado de fora da prisão. O filme encerra-se
ali, nesta imagem claustrofóbica, uma rima visual com aquela "frase cinematográfica"
que abre a narrativa, igualmente uma janelinha, mas que dá para o interior duma
maternidade.
Na cena inicial, logo depois
do enquadramento da janelinha, executa-se um plano-seqüência (a filmagem sem
corte) em que a câmara se move para acompanhar as criaturas em cena. Só quando
chega à rua, é que se rompe o plano-seqüência e começam os cortes: leves, sem
pressa. Mas a conduta da câmara nesta cena de abertura -instável, perseguindo
a personagem como se ela, a câmara, se metamorfoseasse nas pernas da personagem-vai
marcar toda a narrativa.
O filme arrola episódios espontâneos,
buscando uma quase documentação da realidade das ruas iranianas. O mais determinante
destes episódios é o das jovens ex-presidiárias que encontram dificuldades para
locomover-se naquele mundo opressivo e vigiado por guardas intolerantes. Mas
há mais: a mãe que amarga ter de abandonar sua filha fiando que uma boa família
acolha aquela desprotegida garotinha de três aninhos. Sem homem, a jovem ex-presidiária
grávida não topa facilidades em seu caminho. E a prostituta é presa no final
enquanto o homem que a acompanha é liberado. A velha mulher, no início do filme,
recebe com pesar a notícia de que sua filha teve uma menina: a família do marido
aguardava por um garoto. O círculo deixa claro: ser mulher no Irã é ser
marginal. Como nos velhos jogos narrativos do neo-realismo italiano (basta pensar
em Roma, cidade aberta, 1945, e Paisà, 1946, obras-primas de Roberto
Rossellini), as muitas histórias fragmentadas servem a caracterizar a vida:
é assim que a mente do indivíduo enxerga o mundo, fragmentos.
Depurando as novidades formais
esboçadas em O espelho (1997), Jafar Panahi transforma O círculo num
filme que mostra que a criatividade em cinema é algo mais palpitante e secreto
que as fantasias escapistas admiradas pelo público, de que Harry Potter e
a pedra filosofal (2001), de Chris Columbus, é o ponta-de-lança.
Por Eron Duarte
Fagundes