15
de dezembro de 2003
Numa
das muitas reflexões históricas dos diálogos
de As invasões bárbaras (2003), filme canadense
de Denys Arcand, a personagem de Remy, contestando que o século
XX tenha sido mais violento do que os anteriores e levantando
dados que mostram estatísticas de genocídios de
centúrias passadas muito maiores que as duas guerras dos
cem anos tidos como especialmente brutais (1900-2000), conclui
seu pensamento com esta frase: “A história da humanidade é uma
história de horror.”
Aporta
por aqui outra realização canadense, Ararat (Ararat; 2002), rodado no outro idioma do Canadá, o inglês,
e não no francês de Arcand. O realizador Atom Egoyan,
de ascendência egípcia, é um dos mais prestigiados
da atualidade e sua acuidade como cineasta é sempre notável:
beleza, profundidade e sutilezas estão na ordem do dia
de seu cinema.
Ararat,
com suas reflexões agudas sobre as relações
históricas no cinema, é outra amostra da tese da
oração de Arcand: o horror é o que tem movido
a história da humanidade. Manipulando certas complexidades
narrativas com muita desenvoltura, Egoyan fala de várias
coisas que se cruzam numa história única: no aeroporto
de Montreal um jovem chega com alguns rolos de filmes e é questionado
pelo velho que controla a chegada de bagagens; aproveita para
falar da realização de um filme de que participou
como assistente de direção e motorista e apõe
algumas análises históricas sobre a massacre de
armênios por turcos em 1915, que é do que trata
o filme dentro do filme; Egoyan acompanha a realização
deste filme no flash back do aeroporto e em certos momentos o
filme de Egoyan deixa de existir para ser só este filme
que trata da violência étnica (a violência étnica
que no hollywoodiano Lagrimas do sol, 2003, de Antonio Fuqua, é edulcorada,
em Egoyan é dura e cruel, aproximando-se das raias de
insuportável desumanidade de que a câmara do cineasta
não se afasta); Egoyan igualmente fala das relações
dum garoto (o mesmo que chega ao aeroporto com os rolos de filmes)
com sua mãe (uma professora de história da arte
que serviu de consultora no filme do genocídio de armênios
e tem um livro e dá palestra sobre um pintor armênio
da época do massacre, Arshile Gorky), com seu pai morto-ausente
(um terrorista que se suicidou), com sua meia-irmã (incesto),
perturbando a passividade do espectador diante dos conceitos
habituais do mundo; há igualmente uma situação
de espelho entre o universo do pintor Gorky (que aparece aqui
e ali pintando suas obras) e as vidas das personagens da atualidade,
assim como o espelho está presente quando Egoyan relaciona
os tempos de hoje com este mundo ancestral do início do
século XX e ainda outro medieval, o 451 da luta dos armênios
contra os persas.
Mais
envolvido com a profusão de linhas narrativas, Ararat não atinge a mesma profundidade dos filmes anteriomente
vistos por aqui assinados por Egoyan. Mas não deixa de
estar entre as obras cinematográficas mais importantes
da atual temporada de cinema em Porto Alegre.
Por Eron Fagundes
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