A ALMA DO CINEMA
 

 

07 de setembro de 2006

A realizadora iraniana Samira Makhmalbaf detém a alma do cinema, apesar de sua inacreditável juventude (26 anos). Aos dezessete anos ela rodou a obra-prima A maçã (1998), uma destas performances entre o documentário e a ficção que embaralham os conceitos, reencenando diante das câmaras o possível drama real de duas irmãs encarceradas inocentemente pelo pai. Depois veio outro belo filme, O quadro-negro (2000), tratando da questão da educação num meio resistente como o primitivo Irã. Agora, em Às cinco da tarde (Panj é Asr; 2003) ela produz uma narrativa de rara perfeição cinematográfica para, entre outras coisas, voltar a falar da necessidade da educação, a despeito das resistências arcaicas: a jovem protagonista quer estudar enfrentando mesmo a oposição de seu pai. Samira detém a alma do cinema, como o italiano Michelangelo Antonioni e o sueco Ingmar Bergman; Samira é, ouso dizer, um dos gênios do cinema moderno e a interioridade de seu plano cinematográfico remonta ao francês Robert Bresson.

A mulher iraniana e a repressão ancestral que a cerca estão no centro das preocupações da obra de Samira e informa toda a sua estrutura estética, pela criação de um novo despojamento de filmar e de um senso plástico que se aninha nos enquadramentos, na posição e movimento da câmara, no sentido da personagem dentro do quadro, na luz de deserto que ilumina a cena. Noqreh, a garota de Às cinco da tarde, quer estudar e aspira a ser presidente do Afeganistão; sua rebeldia contra a situação milenar da mulher iraniana é o prolongamento natural das irmãs aprisionadas e atoleimadas de A maçã, Noqreh é o que vem depois da prisão, os tempos pós-talibã do país.

Ao mesmo tempo em que Às cinco da tarde é uma obra comprometida politicamente com as mudanças sociais da nação afegã, é também um filme poeticamente revolucionário. Desde seu título, há a referência a um célebre poema do poeta andaluz Federico García Lorca; os poderosos versos sobre a morte do touro e o vigor daquelas terríveis cinco da tarde em todos os relógios são recitados por um jovem afegão aspirante a poeta apaixonado pela protagonista tanto quanto pela poesia de Lorca; ver o sangüíneo texto de Lorca ecoar numa língua remota é uma curtição fílmica impagável, e nota-se a força das imagens do poema por sua sobrevivência intacta no idioma afegão, tão longe da latinidade original dos versos.

As andanças da atriz Agheleh Rezaie pelos cenários percorridos pela câmara de Às cinco da tarde são uma inovação estética tão boa quanto aquela que Antonioni compôs  para as caminhadas da francesa Jeanne Moreau em A noite (1960). Ora com o véu clássico das mulheres muçulmanas, ora com um pau sustentado pelos ombros e deste pau dependurando-se duas pequenas pipas, a intérprete caminha constantemente em cena, semeando uma aprofundada relação cinematográfica em Às cinco da tarde.

O roteiro do filme foi extraído dum romance de Moshen Makhmalbaf, pai de Samira e um dos principais nomes do cinema iraniano.É um caso de genialidade dupla pai e filha.

Por Eron Fagundes

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