Ao
apresentar seu filme Heimweh/Nostalgia (1990), longa-metragem em 16 mm realizado
a quatro mãos com Tuio Becker, ao público da Mostra Internacional de Cinema
em setembro de 1990, o cineasta Sérgio Silva afirmava que seu trabalho era um
pouco como a coragem de seu protagonista, que no interior gaúcho do início do
século ousou encenar Schiller. Sete anos depois, Sérgio conta com recursos incríveis
de produção considerando-se a eterna incipiência de nosso cinema, para rodar
seu primeiro longa-metragem em 35 mm: Anahy de las Misiones (1997) se insere
na linha de filmes brasileiros que buscam os favores do público, de que O quatrilho
(1996), de Fábio Barreto, é o carro-chefe. Seria possível? Seria demasiado louco
que um realizador dos confins do sul pretendesse ombrear-se com um filho do
clã Barreto?
Ocorre que o filme de Sérgio
é bastante melhor que o de Barreto. Sérgio é mais diretor, seu longo aprendizado
no meio amadorístico e esquecido do cinema gaúcho lhe ensinou muita coisa e
veio a produzir uma narrativa cinematográfica surpreendente. Para sorte de nossa
análise, há pontos em comum entre O quatrilho e Anahy; vamos examinar o que
estes pontos geram na tela. Tanto na fita de Fábio quanto na de Sérgio temos
uma reconstituição de época e a adoção dum linguajar dialetal nos diálogos;
o dialeto italiano da serra gaúcha num e o falar gauchesco no outro. A pintura
de época de Sérgio é mais rigorosa e pessoal, os atores se adaptam melhor às
personagens. É verdade: inicialmente o naturalismo da reconstituição (dos tipos,
da linguagem) em Anahy se enrola nos mesmos problemas de ausência de espontaneidade
do filme de Fábio, a seqüência em que Anahy e Joca Ramires trocam lembranças
à mesa (a despeito da experiência de Araci e de Paulo José, que os interpretam)
é chave neste processo de transição da passagem de um modo constrangedor de
expressar-se a uma audição mais fluente; porém, com o correr das imagens, Sérgio
demonstra sua perícia de diretor, montando um drama épico muitas vezes mais
crítico que as trivialidades sentimentais expostas em O quatrilho.
Em Anahy de las Misiones vários
talentos se uniram para gerar o produto final. No roteiro houve a participação
do escritor gaúcho Tabajara Ruas; nota-se aqui e ali a capacidade de dialogação
do autor de O fascínio (1997). A música foi entregue a uma de nossas melhores
cabeças musicais, Celso Loureiro Chaves. A fotografia de Adrian Cooper capta
em alguns planos gerais e panorâmicas o senso épico dos pampas. Conduzindo a
consciência do filme, a atriz Araci Esteves espalha sua capacidade interpretativa
pelo celulóide, chegando a seu grande momento na cena em que a intérprete se
atira à lama extravasando o dilaceramento da dor de sua personagem. Mas todos
estes talentos são dispostos com sentido de cinema por Sérgio Silva.
Sete anos depois de Heimweh/Nostalgia,
as palavras de Sérgio sobre a coragem de fazer cinema voltam à cabeça de quem
vê Anahy de las Misiones. Num cinema que busca sua ressurreição muita vez no
cosmopolitismo e recorrendo amiúde a diálogos em inglês, é coragem contar uma
história regional, numa linguagem regional e arcaica. Com extrema singeleza
de tons e num ritmo cinematográfico sutil e quase contemplativo, Sérgio narra
uma história à margem da guerra dos farrapos; uma mulher e seus filhos cruzam
os caminhos da história, esquecidos do tempo. Não é bem esta a função de um
cinema crítico, a de dar imagem e som aos esquecidos, como diz o título duma
obra-prima de Luis Buñuel?
Por Eron Duarte Fagundes, em 8.4.01
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os comentários sobre o DVD do filme Anahy de las misiones.