UM DOS MAIS “DESAGRADÁVEIS” E PERVERSOS FILMES BRASILEIROS
 

 

18 de julho de 2007

Baixio das bestas (2007), o novo filme rodado pelo pernambucano Cláudio Assis, se alinha numa corrente de narrativas cinematográficas  desesperadas, duras, sujas e perturbadoras de que O céu de Suely (2006), do cearense Karim Aïnouz, e O cheiro do ralo (2007), do paulista Heitor Dhalia, são exemplares fortes, contundentes; poderíamos juntar a estes o cortante Batismo de sangue (2006), de Helvécio Ratton, mas o componente político direto altera a perspectiva. De qualquer maneira, são quatro obras empenhadas e reflexivas (mesmo que esta reflexão seja feita muitas vezes a partir do estômago) que se opõem a uma outra forma do cinema brasileiro, mais digerível e mansa pela goela do espectador, como o óbvio Caixa dois (2007), de Bruno Barreto, e o incauto Nossa Senhora de Caravaggio (2007), de Fábio Barreto.

Nada é tranqüilo na relação do observador com Baixio das bestas. O filme nos coloca brutalmente diante de nossa animalidade, afastando-se de qualquer pudor ético ou estético. O primeiro plano de uma bocarra de um homem engolindo o caldo duma cana que ele esmaga com as mãos é antologicamente animalesco; nenhum lirismo, nenhum coitadismo para com o perdido e explorado homem do sertão brasileiro. Baixio das bestas  é notavelmente agressivo. É um filme metido a besta com o espectador. E é também um filme sobre as bestas que somos. A perversidade do narrador de Baixio das bestas não dá tréguas à visão.

São incômodos os planos de detalhes das partes íntimas dos atores. Uma mulher se depila indolentemente, dois homens conversam num cenário rude e aberto tocando amiúde seus genitais, Dira Paes (a contida atriz de televisão) desanda numa encenação orgíaca onde sua personagem de prostituta é violentada por três machos. O que poderia ser o documental da pornografia se transforma, nas mãos de Assis, numa voracidade sobre o olhar do assistente. Baixio das bestas desrespeita os códigos do bom comportamento; e põe abaixo as possíveis cerimônias da câmara para com a intimidade de astros da televisão, como Caio Blat, que recentemente viveu um frade revolucionário em Batismo de sangue. Caio fez algumas cenas perturbadoras de sexo em Cama de gato (2002), de Alexandre Stockler, realização que poderia estar ao lado do grupo de filmes sujos e irreverentes se a ação de Stockler ajudasse na elaboração formal de seu filme. Em Baixio das bestas Caio é mais uma presença de erotismo baixo do que o mergulho sexual que foi em Cama de gato.

Há três ambientações sociais em Baixio das bestas: o círculo de seres agrestes que circundam aquele avô que tira proveito sexual de sua neta de catorze anos; os garotos de inferninho que cruzam o sertão em busca de suas emoções sado-sexuais; a vida das prostitutas que agitam aquele mundinho pasmacento da caatinga. Circundando estas ambientações que muito se assemelham, a câmara surpreende os desolados e inóspitos cenários da natureza do interior do Nordeste brasileiro.
Com roteiro exemplar de Hilton Alencar e a sempre estudada fotografia de Walter Carvalho, adotando a linha do desempenho selvagem dos atores onde se destacam Dira Paes e Matheus Nachtergaele, Baixio das bestas reconcilia o espectador com um cinema brasileiro de ponta. E isto, vindo de Cláudio Assis, não surpreende para quem conhecia o diretor de Amarelo manga (2002), uma visão dos subúrbios do Recife tão avassaladora quanto este debruçar-se sobre o sertão animal.

P.S.: O messianismo esquisito da figura de Nachtergaele, uma espécie de líder de ações subversivas, parece uma continuação daquele ser que o ator pôs antes na tela em A concepção (2006), de José Eduardo Belmonte.

Por Eron Fagundes

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