O ANO CINEMATOGRÁFICO
 

 

30 de dezembro de 2011

É bem verdade que o ano cinematográfico ainda não terminou; mas, espiando os títulos lançados nesta sexta-feira, concluí que dificilmente algum deles poderá estar entre os destaques positivos ou negativos da atual temporada de cinema. Assim, atrevo-me a fazer o balanço do que mais me empolgou e o que mais me irritou nos cinemas ao longo de 2011.

OS DEZ MELHORES FILMES DO ANO: (por ordem de preferência)

1. A árvore da vida, de Terrence Malick. O melhor filme lançado em Porto Alegre este ano. Pelo maior cineasta americano vivo, trata-se duma aguda reflexão sobre as raízes cósmicas da vida com uma grandeza que nem sempre foi muito bem compreendida pelo espectador.

2. Tio Boonmee, que pode recordar vidas passadas, de Apichatpong Weerasethakul. Tio Boonmee fala de algo que curiosamente tem andado na moda no cinema ocidental recente, do americano Clint Eastwood ao brasileiro Daniel Filho: a possibilidade do ser de passar por mais de uma vida, as chamadas vidas passadas. A diferença é que Weerasethakul se insere na reflexão budista (certos planos contemplativos poderiam remeter ao cinema do japonês Yasujiro Ozu); o budismo, sabe-se, antecipou o espiritismo ocidental ao defender os estágios da alma por várias vidas corporais. Além disto, se evidencia que vai uma distância muito grande entre a profundidade espiritual do tailandês e a curiosidade brejeira que o tema tem despertado por aqui no cinema. Demais, esta profundidade espiritual é valorizada sobremaneira por uma invenção plástica constante do realizador tailandês.

3. Singularidades  de uma rapariga loira, de Manoel de Oliveira. O cineasta luso Manoel de Oliveira, que já teve sua fase de fascínio pelo ficcionista Camilo Castelo Branco (Camilo foi personagem-relâmpago de Francisca, 1981, e em O dia do desespero, 1992, foi a figura central, e teve seu romance Amor de perdição transposto para uma série televisiva em 1978), agora se debruça sobre o conto de Eça para rodar um filme tão curto quanto esteticamente perfeito. Singularidades de uma rapariga loira (2009), cuja estreia internacional se deu no Festival de Cinema de Berlim de 2009, é a nova obra-prima do genial diretor português; como sempre, haverá quem se aborreça com os longos planos fixos, imóveis, rígidos, semiteatrais com que Oliveira filma suas cenas, voltadas intensamente para uma interioridade plástica; o plano-sequência que abre o filme, mostrando um cobrador dentro dum vagão de trem marcando os bilhetes dos passageiros, se dá ainda durante a apresentação de créditos e é uma destas fixações de imagens com que Oliveira exacerba a tolerância do espectador para com a duração do plano.

4. As oficinas de Deus, de Claire Simon. Ao captar a realidade dum reformatório de mulheres grávidas hesitantes diante da necessidade/possibilidade de fazer um aborto, a realizadora francesa Claire Simon, em As oficinas de Deus (Les bureaux de Dieu; 2007), utiliza entrelaçados planos-sequência para descrever os depoimentos-entrevista de suas personagens. Ao valer-se dos planos-sequência com pequenos movimentos de câmara dentro dos cenários e entre os diálogos, a cineasta transforma a realidade (que ela quase documenta) num ente mágico; o olhar do espectador para estes movimentos de câmara dentro da realidade se envolve magicamente com esta estética do filme —o plano-sequência, uma forma fílmica que capta o tempo real encenado, também serve para alterar esta realidade especialmente quando, depois dos planos fixos, se apõem os movimentos.

5. Abutres, de Pablo Trapero. Com um roteiro extraordinário, em que todos os elementos do assunto-mãe são explorados com mestria, e contando com os engenhos interpretativos de Martina Gusman (esposa de Trapero) e Ricardo Darín (em seu ponto alto), Abutres é um exercício de habilidade cinematográfica de Trapero em que o vigor da imagem e da montagem deve casar-se com aquilo que está sendo encenado. A crueza de algumas cenas (o acidente tramado pela personagem de Darín com um amigo e a morte conseqüente deste amigo atendido pela indignada médica vivida por Martina) em momento algum desorientam a especificidade crítica de Trapero e sua inarredável sutileza à maneira platina; os jogos de montagem de Abutres provocam um certo êxtase plástico de que estamos desabituados.

6. Estrada real da cachaça, de Pedro Urano. Este é o primeiro filme longo do carioca Pedro Urano, que chegou a exercitar sua habilidade cinematográfica como diretor de fotografia. As origens fotográficas de Urano estão bem caracterizadas na peculiar plástica de Estrada real da cachaça; é a performance da imagem-cinema que compõe a estrutura narrativa, com as mutações de foco que se insinuam nos quadros, o contraste entre a documentação atual a cores e o preto-e-branco de arquivo, isto é, a inquietação da imagem (que inclui também o conceito de montagem) é profunda e criativamente formal em Estrada real da cachaça, um documentário que subverte integralmente a aparente objetividade do gênero.

7. Melancolia, de Lars Von Trier. Em seu filme anterior, a obra-prima Anticristo (2009), Von Trier falava da culpa feminina com uma boa dose de violência machista, o que constrangeu a muitos. Em Melancolia ele apazigua suas demências: a luz que engole os seres no plano derradeiro. Se não fossem suas declarações incompreensíveis, talvez Melancolia pudesse fazer com que aqueles que se perturbaram, afastando-se, com Anticristo pudessem voltar mais calmamente ao cinema exacerbante e delirantemente profético de Von Trier.

8. O garoto da bicicleta, De Jean-Pierre e Luc Dardenne. Uma característica formal que está na base da linguagem cinematográfica dos irmãos cineastas belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne é a utilização insistente de planos próximos da cena que se movimentam em enforcados travellings, como se estivessem fazendo um documentário íntimo e doméstico. Este maneirismo de filmar, que estorva um pouco a fruição estética na maioria de seus super-estimados filmes vistos por aqui, se não chega a ausentar-se inteiramente, é ao menos amenizado pelo coeficiente de sinceridade emocional de O garoto de bicicleta (Le ganin au vélo; 2011), com alguns momentos de arrebatar o espectador.

9. Meia-noite em Paris, de Woody Allen. Isto sempre esteve presente em todos os filmes do americano Woody Allen. Mas em Meia-noite em Paris (Midnight in Paris; 2011), seu mais recente trabalho “europeu”, a coisa se torna mais clara, devastadora e até autofágica. O conhecimento, é verdade, estimula o cérebro e dá em algum momento ou circunstância um certo poder a quem o detém; mas muitas vezes interessar-se pelo conhecimento ou pela chamada grande cultura é um jogo tão divertido quanto jogar bolas de gude ou contar piadas comuns: é questão de gosto, e o gosto de Allen é certamente intelectual, mesmo que ele adicione a seus refinamentos aqui e ali o banal de todos os mortais. A convivência de Allen com o próprio meio intelectual do cinema nunca foi tão pacífica quanto parece: acusamos nele os plágios, as reverências fáceis, os excessos de um cinema raciocinado, os ajustes do drama clássico ao modo do século XIX (pré-cinematográfico, portanto); ou seja, acusamos nele a nós mesmos, aqueles que, aproximando-se do cinema de Allen, tem essencialmente uma relação intelectual com o cinema. E, inevitavelmente, não podemos deixar de acusar o fascínio que o cinema de Allen nos impinge: o que amamos e o que odiamos no universo de Allen está em nós; e a busca por explicar se certos Allen são melhores que outros escorrega nos lugares-comuns de sempre: observem os resenhistas.

10.  A pele que habito, de Pedro Almodóvar. O espectador que se dispuser a acompanhar os créditos finais de A pele que habito (La piel que habito; 2011), o novo filme do espanhol Pedro Almodóvar, e prestar atenção vai dar com a informação de que uma das fontes da narrativa excêntrica é o livro O gene egoísta, do inglês Richard Dawkins, onde se esposa o conceito de que cada cérebro é tão-somente hospedeiro duma ideia geral que se forma habitando vários cérebros, a noção do meme (que na filosofia de Dawkins corresponderia ao gene da biologia) é a base da teoria de O gene egoísta. O que atravessa os conceitos que habitam A pele que habito é uma sensação parecida trazida pelos ecos da leitura de Dawkins: parece que Almodóvar nos está dizendo que a pele é hospedeira duma alma; para além da metamorfose de sexo sofrida violentamente pela personagem de Vicente/Vera, é a alma que interessa, a pele (de homem ou de mulher) é somente a fonte que hospeda uma personalidade, como fica claro na estonteante sequência final em que Vera volta diante de sua mãe, reapresentando-se como Vicente.

E, sem mais referências, os dez piores filmes do ano cinematográfico, por ordem de ruindade:

1. Caça às bruxas, de Dominic Sena. O pior filme do ano.

2. O ritual de Mikael Häfström.

3. Velozes e furiosos 5, operação Rio, de Justin Lin.

4. Piratas no Caribe, navegando em águas misteriosas, de Rob Marshall.

5. Lanterna verde, de Martin Campbell.

6. Os residentes, de Tiago Mata Machado.

7. O besouro verde, de Michael Gondry.

8. Os especialistas, de Gary McKendry.

9. Incontrolável, de Tony Scott.

10. Noite escura e tempestuosa, de Larry Blamire. Este, o melhor entre os dez piores...

Enfim, senhores e senhoras, que, de uma maneira ou de outra acompanharam meus périplos cinematográficos de 2011 descritos em textos, que o fim de ano lhes seja leve, como desejava uma personagem de Machado de Assis a “dois amigos defuntos”, e que o Novo Ano lhes renove a vitalidade e a esperança.

Por Eron Fagundes

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