O CINEMA CONFISCADO
 

 

05 de janeiro de 2006

Carlos Reichenbach, gaúcho por nascimento, paulista por formação, pratica um tipo de cinema que foi confiscado do público habitual e de certos setores da crítica cinematográfica brasileira que nunca logrou esquecer suas origens da Boca do Lixo paulistana onde ele forjou sua estética fílmica. É uma travessa irresponsabilidade de filmar que torna seus filmes, mesmo com o sentido do bem feito que atualmente exibem, dotados dum frescor de linguagem bastante único e que devem sua herança ao convívio com o meio pornográfico onde nos anos iniciais o diretor lutou por sua sobrevivência. Desde o primeiro movimento de câmara de Bens confiscados (2005), onde o tom da fotografia e a plástica do enquadramento vão modulando um certo estilo de filmar que permite a identificação imediata do “autor”, Reichenbach nos diz a que veio: estampar a serenidade reflexiva de um cineasta maduro.

Os excessos temáticos de Bens confiscados à primeira vista espantam vindos do olho cinematográfico de Reichenbach. Há neste filme uma sisudez aparente que faz com que se constate que aquela “criancice de filmar” que era o foco estranho de uma obra como Extremos do prazer (1983) se foi perdendo ao longo dos anos no celulóide de Reichenbach; a primeira hora de projeção, diante do esmiuçar das questões dum senador corrupto e prestes para ser cassado (na verdade esta personagem atualíssima e muito visível na mídia brasileira é invisível no filme: nunca o vemos), parece incômoda e estranha ao projeto estético de Reichenbach; mas, ao ir aprofundando o isolamento numa praia gaúcha das criaturas de uma ex-amante do político e do filho bastardo deste político (filho gerado com outra ex-amante), o cineasta volta a seu meio, sua impagável análise das relações humanas sob uma perspectiva marginal. Certos retratos estereotipados, como a esposa raivosa do senador (utilizada de maneira sensacionalista pela televisão: os primeiros planos da vociferação da mulher, em imagens granuladas, são repuxados, um pouco maneiristas, mas eficientes) e o gauchão vivido pelo ator gaúcho Werner Schünemann, são pecadilhos que não afetam o brilho geral do filme.

Plasma-se em Bens confiscados uma das virtudes básicas do realizador: ele é, lado a lado com o paulista Walter Hugo Khouri, um de nossos poucos artistas do cinema que logram impor ao quadro uma autêntica atmosfera cinematográfica, o clima da cena como se dizia na década de 70. Um suspense plástico que às vezes parece uma fusão do “temor” à Alfred Hitchcock com a interioridade de Robert Bresson. Um espectador como eu, que tem percorrido os cenários da praia gaúcha de Cidreira (onde o filme foi rodado quase inteiramente) por estes últimos vinte anos, sente mais agudamente esta extraordinária habilidade de Reichenbach: chega a ser assombrosa a maneira como ele transforma a naturalidade daquelas ambientações em fragmentos metafóricos do Brasil de hoje.

Se Bens confiscados é o Brasil examinado a partir duma remota praia do sul, pode-se dizer que sua maneira de filmar abre uma reflexão para um outro confisco: o confisco, pelo cinema comercial a que o filme de Reichenbach se opõe, do pensamento dentro duma sala de cinema, onde, imaginam os produtores, só gente atrasada mentalmente vai.

Por Eron Fagundes

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