SOB A SOMBRA DE RESNAIS
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16 de agosto de 2004

Apesar de certas camuflagens a que a pasteurização de filmar pode levar, o cinema americano volta e meia tem suas crises de identidade européia. Ao debruçar-se sobre as imagens de Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Eternal sunshine of spotless mind; 2004), dirigido por Michel Gondry, o espectador mais informado dá com a sombra do francês Alain Resnais, cujo tratamento cinematográfico da memória é o mais rigoroso até hoje visto numa tela; a certa altura da narrativa de Gondry, a protagonista vivida por Kate Winslet (em sensível interpretação) diz a seu parceiro amoroso (um surpreendentemente bom Jim Carrey) que vai encontrar-se com ele num determinado lugar, e a frase ecoa-nos assim como as referências ao passado em locais como Hiroshima e Marienbad nos clássicos Hiroshima, meu amor (1959) e O ano passado em Marienbad (1961). A influência de Resnais segue pela linha recitativamente literária das orações que surgem over dentro das imagens: o clima nebuloso e por vezes obscuro dos Resnais citados é simplificado, americanamente, em Brilho eterno, fazendo do retrato da mente uma confusão e não uma interpretação cerebral-poética.

O roteirista Charlie Kaufman já havia demonstrado sua afeição pelo estudo da mente em cinema em Quero ser John Malkovich (1999), de Spike Jonze. Suas idéias até que não são de jogar fora; mas ele não tem tido sorte com a pouca criatividade dos cineastas que filmaram seus roteiros. Os aspectos seletivos e múltiplos da memória são pescados por Gondry em imagens óbvias demais: por exemplo, o recurso fácil de fazer desaparecer da cena certos elementos de cenário que seriam como alijados das lembranças da criatura, querendo caracterizar o processo fugidio da retenção mnemônica. Assim, a história de amor que é o centro da trama e deve ser esquecida (esta história de amor) acaba por dissolver-se em trivialidades.

Quando me ponho a pensar no cinema americano de hoje, vejo em alguns casos a sombra de mestres europeus que os cineastas ianques se esforçam por pasteurizar. Se Woody Allen segue fiel ao francês Eric Rohmer em Igual a tudo na vida (2003) e Michael Moore aproveita certas sobras do cinema político de montagem do greco-francês Constantin Costa-Gavras em Farenheit 11 de setembro (2004), o menos talentoso Gondry faz de Brilho eterno uma atualização falsificada de Resnais. Na verdade, as características esquemáticas da realização de Gondry a alinham entre aquelas pretensas novidades formais que não passam de maneirismos superficiais observadas (as falsas novidades) ou observados (os trejeitos maneiristas) em películas como Amnésia (2000) e Insônia (2002), ambas dirigidas por Christopher Nolan.

Por Eron Fagundes