29
de março de
2005
O filme
começa tagarelando a gíria agressiva dos jovens
brasileiros de hoje e vai concluir-se derramando-se na mesma
tagarelice. A tagarelice dramática da construção
narrativa do filme vai ter sua linha contínua nos depoimentos
documentais agregados à realização. Cama
de gato (2002), dirigido por Alexandre Stockler, é um
filme nacional que passa o tempo inteiro expelindo diálogos
e até seus créditos finais são subjugados
pela falação interminável; de certa maneira,
a discussão proposta pelo cineasta (a gratuidade da violência
de nossa juventude de classe média, a uma luz filosófica
da teoria do livre arbítrio) é apresentada assim
mesmo, como uma sentença que não se esgota mesmo
depois que a projeção se fecha nos créditos
conclusivos.
Stockler,
oriundo do teatro, se vale de seu provocativo “analfabetismo
cinematográfico” para impor ao espectador duas situações
básicas: o terror claustrofóbico da encenação
e um visual sujo armado com câmara digitais que, apesar
de seu exterior modernoso, evoca o mais precário udigrudi
praticado no Brasil nos anos 70. A despeito de sua irreverência
para com as formas clássicas de filmar, lembrando às
vezes as inserções metalingüísticas
do realizador franco-suíço Jean-Luc Godard, Stockler
transforma a gramática de seu filme em algo rançoso,
pois foi incapaz de elaborar os elementos aleatórios de
suas encenações; nada mais artificial em Cama
de gato do que seu brutal realismo, a que falta o brilho e o engenho
dos grandes mestres da perversidade, como o italiano Pier Paolo
Pasolini ou o espanhol Luis Buñuel, e se disserem que
o artificial é adrede buscado por Stockler, direi que
a construção deste artifício esbarra numa
total falta de jeito do realizador (coisas de um homem de teatro
metido no cinema?).
O
observador poderia valer-se de dois outros filmes brasileiros
recentes para estabelecer os limites da proposta de Stockler.
Nina (2004), de Heitor Dhalia, e Contra
todos (2004), de Roberto
Moreira, foram narrativas agressivas e sujas; mas estão
muito longe do estado de coisa perdida em que está mergulhado
Cama de gato, mais uma curiosidade do que um verdadeiro “gato” do
cinema nacional.
Enfeixando
estas observações, é irônico
constatar que um pulcro ator de talevisão como Caio Blat
empreste sua doce imagem a uma seqüência dura de sexo
explícito (a comentada cena do estupro da garota por três
amigos). Em todos os aspectos, Cama de gato é tão
gratuito como filme quanto são gratuitos os gestos de
suas personagens; há um contágio que se impregna
das criaturas para a própria realização.
E o que sobra para o pensamento situa-se à margem propriamente
da narrativa de Stockler.
Por Eron Fagundes
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