KANDAHAR, TERRA MÍTICA DE UM NOVO CINEMA
 

 

É impressionante observar o desenvolvimento do realismo cinematográfico do diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf e a transformação deste realismo numa áspera poesia visual, poder de uma imagem tratada com rigor de formas que leva à abstração. A caminho de Kandahar (Safar e Ghandehar; 2001), o novo Makhmalbaf, escora sua atualidade aos olhos do público no momento internacional de hoje, em que o Ocidente ajuda a derrubar este lugarejo nas montanhas de onde emergiu o totalitarismo talibã que domina o Afeganistão; mas o realizador de Gabbeh (1996), talvez seu trabalho mais lendário e inquietante, não é um artista da moda, do instante: sua captação do universo miserável do Afeganistão adota ares documentais para, de repente, explodir em metáforas que nasce da peculiar sociedade árabe de rostos encobertos, barbas falsas, vestes coloridas, cantos doridos, região desértica.

O momento atual do cinema de Makhmalbaf é desesperadamente poético. Longe se vão os anos de pura observação social de O ciclista (1989). É bem verdade que em Kandahar a câmara enovela-se naqueles seres rudes e desglamurizados do mundo afegão. É bem verdade que não estamos aqui diante duma abstração tão grande aquela de O silêncio (1998), o último Makhmalbaf visto na cidade. Ocorre, todavia, que a estranha e perturbadora história contada em Kandahar metaforiza a intolerável miséria retratada: uma afegã exilada no Canadá, jornalista profissional, tem de chegar à cidade-título para salvar sua irmã, que planeja matar-se durante o último eclipse do milênio; registrando suas impressões num gravador, a protagonista pretende levar a sua irmã uma grande fé na vida, visando a evitar seu gesto final. Makhmalbaf é o olho e o ouvido que percebe a grandeza deste ser humano que atravessa os perigos (políticos e sanitários) do deserto em nome do amor fraternal.

Recoberto de uma interioridade plástica por vezes alucinatória, A caminho de Kandahar tem trechos de antologia do cinema, como a dos homens mutilados (a guerra civil do país lhes tirou as pernas) que correm de muletas para apanhar próteses jogadas de pára-quedas. Outro momento-cume está nas imagens do casamento que fecha a narrativa: aqueles cantos funéreos desorientam.

Provavelmente a irmã jornalista não salvou a outra, pois foi detida pelos talibãs de quem fugira para o Canadá e a cujo seio o amor a fazia tornar. Resta o brilho de um filme no interior do obscurantismo; a voz no gravador serve de costura para imagens tão pessoais que só um autor como Makhmalbaf poderia conceber. Um lábio, uns olhos, uma paisagem: tudo cruza admiravelmente pela montagem, em planos muito próximos do nosso coração. O ritmo criado a partir duma particular colagem dos planos e da duração destes é uma forma nova, uma linguagem que exubera pela maneira como o realismo se vai desfazendo para dar lugar aos signos metafóricos. Como no italiano Michelangelo Antonioni, autor de um longínquo O eclipse (1961). A última imagem de Kandahar é o eclipse solar, elipse do suicídio da mana da protagonista.

Enfeixando o rol das comparações cinematográficas, que não desdouram a pessoalidade do cineasta, observe-se que a estranheza com que Makhmalbaf trata o tema delicado do suicídio tem alguns componentes (distanciamento, sutileza, caráter insólito) que podem ser achados noutro grande filme iraniano recente, Gosto de cereja (1997), de Abbas Kiarostami. Nos iranianos o suicídio é um assunto da vida; e por isso é filmado com tantas curvas elípticas. O homem que vai cobrir-se de terra na realização de Kiarostami aparece envolto em sombras na penúltima imagem da narrativa; a irmã suicida é só uma referência verbal ou mental em Kandahar.

NOTA: Aproveitando o espaço, apresento aos internautas desta página minhas preferências cinematográficas de 2001. Meus dez melhores filmes do ano são: O vento nos levará, do iraniano Abbas Kiarostami; Palavra e utopia, do português Manoel de Oliveira; Amor à flor da pele, do chinês (de Hong Kong) Wong Kar-Wai; Dançando no escuro, do dinamarquês Lars Von Trier; A caminho de Kandahar, de Mohsen Makhmalbaf; Inquietude, do português Manoel de Oliveira; Tônica dominante, da brasileira Lina Chamie; O sonho de Rose, da brasileira Tetê Moraes; O estado do cão, realização da Mongólia pelo francês Peter Brosens e o mongol Dorjhandyn; e Pão e rosas, do inglês Ken Loach.

Por Eron Fagundes

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