DE COMO HOLLYWOOD VÊ UM CRIADOR LITERÁRIO
 

 

06 de março de 2006

Os estereótipos de comportamento físico do escritor norte-americano Truman Capote são captados com mestria interpretativa por Philip Seymour Hoffman em Capote (2005), cinebiografia dirigida por Bennet Miller com as convenções de que Hollywood dificilmente se afasta. Baseado num livro que tenta essencialmente recapturar os artifícios de estrela do espetáculo para a burguesia americana a que Capote se entregava com hedonismo e narcisismo próprios de um intelectual e ainda marcado por um enviesado homossexualismo, o filme acompanha especificamente o que aconteceu ao romancista enquanto fazia seus levantamentos em Kansas para escrever sua narrativa sobre os dois “terríveis” matadores que assassinaram toda uma pacata família no interior da “boa” América; mas o filme deixa de lado as verdadeiras inquietações de Capote como criador e como isto poderia influenciar sua conduta humana, para deter-se numa paráfrase artificiosa do que é um escritor que aspira a ser uma estrela.

É verdade que Hollywood não entende nada de criação artística e menos que nada duma criação artística específica, a criação literária. Não se poderia esperar outra coisa: algo edulcorado e superficial. É claro que o filme deve agradar a um certo gosto simplificado, aqueles espíritos que nunca leram Truman Capote e desconhecem o filme A sangue frio (1967) que o cineasta norte-americano Richard Brooks extraiu do romance de Capote.

Antes de mais nada, convém explicar que Capote, escritor admirável, foi um marqueteiro ardiloso, tão do agrado do mundo de espetáculo que o rodeava. Bem antes de compor uma linha de seu livro, ele anunciou-o como “o romance de não-ficção” ou “a reportagem sob a forma de ficção”; queria apresentar ao mundo um romance temática e formalmente revolucionário; quem o leu sabe que é um grande romance, mas a revolução formal e temática a que se agarra a propaganda prometida por Capote e veiculada por seus capachos (entre eles, alguns críticos) é uma bobagem, sua técnica jornalística está tanto no velho inglês Daniel Defoe (leiam seu Diário do ano peste, 1722) quanto no alemão Alfred Döblin (que escreveu um gigantescamente real Berlim Alexanderplatz, 1929) ou ainda nos livros do francês André Malraux, seu assunto de assassinos abissais vem lá do russo F. M. Dostoievski (não é por acaso, mesmo que tenha um substrato real, que Capote cita Os irmãos Karamazov, 1880, numa passagem de cela de A sangue frio); então, caro leitor ingênuo, qual é a novidade formal e temática? A novidade mesmo é a arte de Capote, que depura e apura seu aprendizado literário.

Voltando ao filme de Bennet Miller, pode-se dizer que, ainda que tenha como apoio de roteiro um livro específico sobre Capote, não desdenha as influências do clássico filme de Richard Brooks. No início de Capote, a jovem amiga de uma das vítimas chega à casa do crime, ao amanhecer, e dá com os cadáveres; mas a cena onde Miller quase copiou Brooks é nos abruptos tiros dos assassinatos.

No mais, nota-se o esforço de composição das personagens para se assemelharem às pessoas reais que as originaram. É, porém, pena que o filme fique nisto, neste maneirismo, nesta exterioridade: longe de propor, como o romance de Capote e o filme de Brooks, uma reflexão perversa sobre os conflitos da sociedade americana, conflitos que se exacerbaram nesta virada de milênio.

Por Eron Fagundes

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