O LIXO HUMANO BRASILEIRO

01/05/2003


          Desde Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), passando pelo pico de Pixote, a lei do mais fraco (1980), a filmografia do cineasta argentino-brasileiro Hector Babenco encontrou seus momentos mais estimados na visão crua da marginalidade do país. Na linha de Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, o novo Babenco, Carandiru (2003), extraído do relato em livro do médico de prisioneiros Drauzio Varela, vai buscar interpretar a sociedade de hoje no seio do banditismo. Se Ônibus 174 (2002), de José Padilha, metaforiza a reflexão sobre o país a bordo dum ônibus de linha do Rio de Janeiro, a realização de Babenco o faz tomando como signo a prisão de segurança máxima paulistana Carandiru, onde em dois de outubro de 1992 policiais fortemente armados se tornaram tão criminosos quanto suas vítimas ao promoverem o massacre impiedoso de cento e onze detentos. Um mar de sangue, eis o que se torna o filme de Babenco em seu final, em que a lavagem dos solos da penitenciária são imagens de melancólica ironia.


          Se em Tudo bem (1977), de Arnaldo Jabor, um operário de construção civil mata outro numa briga por um banana, em Carandiru o início do conflito entre presos que veio a dar num motim e no morticícinio se dá a partir de algo tão banal quanto a luta por um espaço, numa cadeia para lá de lotada, para pôr a secar uma cueca. Antes deste desenlace, Babenco costura seu filme com histórias profundamente humanas. A aids na prisão, o casamento entre homossexuais, a briga homicida entre dois irmãos, o malandro negro que tem duas mulheres (e duas famílias), o modo como cada um veio parar ali. Poderia o analista evocar outro notável filme de prisão brasileiro: Memórias do cárcere (1984), que Nelson Pereira dos Santos tirou a sangue das entranhas do livro de memórias do escritor alagoano Graciliano Ramos. Claro: o médico Drauzio Varela não é Graciliano, mas Babenco sabe muito da emoção cinematográfica. O patético e o horror fazem de Carandiru uma fita cheia de vida: cheia de vitalidade. É verdade que, como dizem as imagens finais, a prisão de Carandiru foi varrida do mapa com sua implosão em dezembro de 2002; mas as histórias de seres humanos ali passadas permanecerão ecoando, na memória dos que sobreviveram depois de testemunharem e na de quem vir o filme de Babenco: esta uma das funções do cinema, eternizar certos eventos históricos importantes por sua contemporaneidade.

          Para o espectador, resta o incômodo de confortavelmente assistir à miséria brasileira instalado passivamente numa poltrona de cinema.

Por Eron Fagundes