05
de abril de 2005
Num
tempo em que a falsificação impera (e muitas vezes
esta falsificação se traveste de posições
aparentemente corretas, como é o caso do filme Vozes
inocentes,
2004, dirigido pelo mexicano Luis Mandoki), uma realização
cinematográfica como o documentário O cárcere
e a rua (2004), rodado pela gaúcha Liliana Sulzbach, deve
ser festejada a plenos pulmões pelo cinemaníaco.
Com lançamento previsto em Porto Alegre e em São
Paulo para esta sexta-feira, dia 29, o filme de Liliana merece
que se vença o habitual preconceito do público
contra o cinema documental; à medida que o espectador
de sempre do cinema de ficção identificar na narrativa
de Sulzbach pontos de contato emocionais com aquele jeito que
têm os bons cineastas de humanizar cada pedaço de
celulóide que ilumine uma imagem humana (o rosto, o corpo,
a voz), a descoberta desta fita rara do cinema nacional se dará naturalmente.
Para
captar a realidade interior de três presidiárias
cujos destinos se aproximam e se afastam entrelaçando-se
na teia narrativa proposta, Liliana rodou seu filme de outubro
de 2001 a abril de 2004, buscando transformar em imagens a evolução
real destas criaturas deserdadas e marginais; como disse a própria
cineasta, houve certas coisas que só a convivência
dela, diretora, e da câmara com as pessoas encenadas poderia
revelar; este tempo real da convivência aparece na habilidade
com que Sulzbach monta sua película.
Cláudia, Betânia e Daniela são as presas
focadas pela câmara compassiva e compreensiva de Liliana.
Cláudia é uma veterana condenada por latrocínio
e que está prestes a ser solta. Betânia começará logo
seu tentador regime semi-aberto. E a jovem Daniela, acusada de
assassinar seu próprio filho (um bebê) e grávida
de mais um infante, está entrando apavorada no mundo do
cárcere. As primeiras imagens da fita mostram Cláudia
logo que sai da prisão, dentro dum ônibus, descendo
do ônibus, andando pelas ruas perguntando pela parada duma
linha de ônibus que a conduzirá a algum lugar; é o
estado de perdida nas ruas de quem é recém-saído
da prisão, o que estas imagens iniciais mostram. Daniela
apavora-se com a cela, normal, nunca enfrentou esta situação,
mas logo se acostuma, inclusive com sua loucura e o manicômio
judiciário (previsão que a experiência desolada
de Cláudia cantara antes para o espectador). É entre
o pavor da falta de liberdade e o tatear no escuro duma liberdade
sem rumo que transita o pensamento de O cárcere e a rua
sobre suas pobres personagens. Há certas coisas que o
documentário não diz explicitamente, mas suas imagens
(ou o desenvolvimento destas imagens) permitem depreender: o
lesbianismo de Betânia na prisão é eventual
e fruto da falta de opção, uma carência,
uma incapacidade de sossegar-se só do indivíduo
Betânia; observando-a lá fora, a câmara de
Liliana surpreende-a sempre envolvida com homens, mesmo que logo
os deixe sob o argumento de que “homem não presta”.
O
cárcere e a rua é o desenho momentâneo
e espontâneo de três vidas perdidas nos rumos da
sociedade contemporânea. A narrativa de Liliana não
investiga seus passados (não lhe interessa os crimes que
cometeram), não projeta seus futuros: as histórias
de Cláudia, Betânia e Daniela são suspensas
no fim da projeção como incógnitas em que
se converte a vida de qualquer ser humano quando paramos para
analisá-la num ponto de sua trajetória.
Por Eron Fagundes
|