UM CARRO É UM CARRO
 

 

10 de julho de 2006

Se para o cineasta francês Jean-Luc Godard uma mulher é uma mulher, pode-se dizer que um carro é um carro: na civilização do automóvel este significante traz em si todo o seu significado e dispensa maiores explicações. John Lasseter, diretor de cinema e esperto empresário do meio, sabe disto; ao intitular seu filme de Carros (Cars; 2006), o realizador apostou nesta identificação fácil do público; todavia não dispensa as retumbantes chamadas na televisão a cabo para interessar a garotada, pois de crianças e jovens é formado basicamente o público dos cinemas. Velhice é com os museus, sabe o mundo do cinema.

Seja como for, Carros, animação que utiliza abundantemente os recursos digitais, me parece bastante mais maduro que as realizações anteriores das produtoras Pixar e Disney. Tem o delírio visual mais criativo. E lida com os elementos humanos em cena de forma mais adulta. A lição de humildade passada pela trajetória de um jovem carro (Relâmpago McQueen) aspirante a campeão de corridas tem uma conseqüência inusitada para um desenho animado de Hollywood; o contato do cotidiano de McQueen com o universo caipira num lugarejo perdido no deserto americano é observado com tato por Lasseter, que por momentos parece esquecer sua gana de grande homem de negócios para ser um cineasta de uma certa sensibilidade.

O que temos em Carros são carros: as personagens são carros, ou suas recriações em animação. Isto é o insólito do filme, que no mais se pareceria com uma narrativa comum de aprendizado emocional, algo que o cinema americano tem feito muito desde, pelo menos, Ensina-me a viver (1971), de Hal Ashby. Um carro como centro de um filme está em Crhistine, o carro assassino (1983), do americano John Carpenter; mas pertencia ao gênero terror. Os carros abundam de todos os tipos em Carros; é esta delícia visual, seu puro divertimento que entretém as crianças. A parte mais melancólica daquilo que é dado a McQueen ver em sua passagem pela longínqua e arcaica Radiator Springs, antes de tornar à Califórnia para a corrida de sua vida, pode ser um pouco mais complicada para os pequenos. Mas nada impede que Carros seja visto só como uma delirante curtição de imagens; o resto talvez seja nossa mistificação de adultos.

Por Eron Fagundes

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