OS URROS DE CASANOVA ENTRE OS URROS DE FELLINI
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15 de março de 2004

Casanova de Fellini (Il Casanova di Federico Fellini; 1976) tem atravessado as décadas estabelecendo discussões contraditórias entre os cinemaníacos. O cineasta espanhol Luis Buñuel confessou, em seu livro de memórias, que saiu da sala muito antes do fim da projeção. Buñuel não está sozinho: pode-se dizer que para muitos espectadores, alguns até fellinianos apaixonados, a versão cinematográfica do realizador italiano Federico Fellini para as memórias do escritor e conquistador sexual veneziano Giacomo Casanova são enfadonhas e beiram o ridículo. Na verdade esta realização iniciava uma fase meio complicada da relação de Fellini com seus analistas; depois da perfeição poética de Amarcord (1973), Fellini nunca mais foi o mesmo e deixou o trem de sua fantasia descarrilar. Casanova de Fellini é este estranho ponto de inflexão: o exagero e a demência tomam inteiramente conta do universo retratado, impedindo uma aproximação mais conseqüente àquilo que o cineasta quer expor.

Mesmo assim, para o felliniano nato, a narrativa apresenta exuberâncias barrocas enlevantes. Inquestionavelmente, uma sensibilidade apropriada à Fellini permite que se assista em êxtase a muitas cenas da trajetória de Casanova na ótica grotesca e satírica do diretor peninsular. A abertura da fita já se revela extremamente rica em suas formas e cores: a festa de Vênus na Veneza natal da personagem-título. Fellini transforma o cotidiano repetitivamente sexual de Casanova num circo cinematográfico criativo, cheio de achados; sua sátira impiedosa aos urros animalescos do aventureiro quando copula topa nos urros de linguagem de Fellini um correspondente notável. Talvez as características agudamente sombrias e uma constante fragmentação dos episódios façam com que Casanova de Fellini adquira conceitos experimentais de cinema dos anos 70, o que explicaria o incômodo provocado na maioria dos assistentes diante de sua visão.

O filme de Fellini é um repertório de sensações diversas. O ridículo duma competição sexual a que se submete Casanova é tragicômico, ou ridículo mesmo, e só é salva a seqüência pela intensidade visual de Fellini. A cena em que Casanova dança com uma boneca, depois vindo a transar com ela, tem uma beleza poética equiparável aos melhores momentos de toda a sua filmografia. Aquele pássaro fálico estranho que aparece seguidamente espiando os desempenhos eróticos da personagem é um achado narrativo e plástico.

O que fica evidente em Casanova de Fellini é a genialidade de formas e aparições do cineasta para expor os conflitos de um homem que gostaria de ser reverenciado por sua inteligência e no mundanismo em que vive é solicitado em seu lado animal (Fellini filma os sexos quase sem ternura, à exceção da cena da boneca, salientando sempre os urros de forma propositadamente ridícula). A velhice da personagem vai acentuar o problema: falido sexualmente, ao declamar seus poemas para um grupo de mulheres (que antes o aplaudiam e procuravam pelo sexo) elas riem dele.

O ator norte-americano Donald Sutherland tem talvez a mais característica interpretação de sua carreira; a voz que lhe empresta o italiano Luigi Proietti parece completamente sua, imagem e som casam-se na criação duma personagem extraordinária, lado a lado com as mais belas invenções de Fellini. Injustamente colocado ao lado de algumas obras menores do cineasta (de que o indigesto Satyricon, 1969, é um exemplo sempre referido), Casanova de Fellini é um notável feito da fantasia felliniana, com uma pintura de época muito própria e aqueles mares de plástico que se enovelam oniricamente na mente do observador. Acresce ainda que as cópias que relançam o filme no país são muito boas, contrastando com aquelas cópias feias e foscas que circularam por aqui ao cabo da década de 70 do século passado.

Por Eron Fagundes