27 de dezembro de 2006
Em O céu de Suely (2006), filme brasileiro dirigido pelo cearense Karim Aïnouz, a câmara dá passagem àquelas imagens e àqueles diálogos de que o cinema se esforça por afastar o espectador: quando Hermila, a jovem personagem vivida magnificamente por Hermila Guedes, chega de São Paulo à sua cidadezinha no interior do Ceará, com um filho no colo, uma parente vai buscá-la de moto na rodoviária, na casa sentam-se à mesa, comem, falam de trivialidades, brincam com o bebê, mais adiante seguem confidências triviais, o que se vai desenrolando, a partir das observações exteriores (como falam, como comem, como se divertem), é a descrição interior daquelas pequenas vidas. Para isto Aïnouz privilegia o debruçar-se cinematográfico sobre o cotidiano. Para o espectador que habitualmente delira diante das cenas de ação de um filme como Os infiltrados (2006), do norte-americano Martin Scorsese, certamente vai ser um pouco incômodo agüentar o rigor documental desta produção que remete aos melhores dias do cinema brasileiro feito no Nordeste, algo bastante mais consistente que o super-estimado Cinema, aspirinas e urubus (2005), do pernambucano Marcelo Gomes. A ação de O céu de Suely, apesar do uso preciso das exterioridades (cenários áridos, entonação dos atores, relações amorosas e sexuais postas na tela com uma certa desfaçatez), é basicamente interior; apela para aquilo que tem de mais devastador o olhar cinematográfico, aquilo que fica oculto (por trás da imagem) no coração do observador.
Como a personagem de Maria Sílvia em Perdida (1975), obra-prima rodada pelo mineiro Carlos Alberto Prates Correia, a figura feminina do filme de Aïnouz é uma perdida nos interiores do Brasil. O pai de seu filho, com quem vivia em São Paulo e ficou de ir a seu encontro na cidadezinha nordestina, desaparece do mapa; envolvendo-se ora com um ex-namorado local, ora metendo-se numa venda de rifa onde ela rifa seu próprio corpo, Hermila, que se converte na perigosa Suely, agita o moralismo interior e se perde sentimental e geograficamente ao partir de ônibus no rumo dos confins de seu país. Poucas vezes o cinema brasileiro apresentou uma personagem que, elaborada em seus conflitos pessoais, pudesse representar com tanta precisão as inquietudes e as perdições do Brasil de seu tempo. Se Antônio das Mortes, o mítico ser criado por Glauber Rocha, foi a nossa virulência visual nos anos 60, Suely é a visão de nossas insatisfações e falta de perspectiva neste alvorecer do século XXI: o plano final que mostra o ônibus levando-a para longe, seu apaixonado local tentando segui-la mas voltando com sua moto antes do encerramento do plano, é tão melancólico quanto amargo em antever o futuro desta jovem, uma das muitas perdidas brasileiras de hoje.
Dizia o ensaísta brasileiro Silviano Santiago que A fúria do corpo, de João Gilberto Noll, é um romance de ação, mas sem John Wayne. O céu de Suely, à sua maneira, é um filme de ação e também um filme romântico: mas sem Leonardo DiCaprio. Ainda bem.
Por
Eron Fagundes