25 de
outubro de 2004
Diante de um filme como Chamas
da vingança (Man on fire;
2004), realização hollywoodiana do cineasta inglês
Tony Scott, se pode melhor avaliar a extraordinária capacidade
cinematográfica do norte-americano Quentin Tarantino em
Kill Bill vol. 2 (2004). Os sentimentos primários e vulgares,
os tipos desprovidos de uma profundidade essencial, as soluções
mirabolantes do roteiro são elementos que estão
tanto em Tarantino quanto em Scott e num batalhão de filmes
da indústria do entretenimento por imagens. Qual é,
pois, a diferença? É a cabeça que move estas
peças-chavão; enquanto Tarantino topa brechas para
sua criatividade formal no aparentemente fechado universo comercial
de Hollywood, o britânico Scott, formado na linguagem publicitária,
se contenta com mexer nos mais rasteiros sentidos do olhar do
espectador: vingar-se pessoalmente de bandidos, e com idêntico
banditismo, é um bom negócio, eis a mensagem reacionária
de Chamas da vingança, evocando certas personas fílmicas
de Sylvester Stallone e Charles Bronson.
Lá pelas tantas, no auge da violência vingativa
da personagem de Denzel Washington (um bom ator, infelizmente
perdido em produções medíocres), a frase
que Tarantino usou emblematicamente em Kill Bill vol.
1 (2003)
reaparece na boca de Denzel diante da atenção atônita
do observador: “A vingança é um prato que
se come frio.” Sorrimos da ligação que surge
entre os dois filmes, que na verdade se separam abissalmente
em sua estética. Em Tarantino a emoção da
vingança é tratada com um cerebralismo raro; em
Scott, apesar de sua sofisticação de imagens (a
fotografia muitas vezes se fragmenta em células para aumentar
a tensão do olhar), o primarismo da reação
do assistente é óbvio demais e se alinha na corrente
das películas comerciais americanas. Por aí se
vê que só mesmo um grande cineasta apaixonado por
estas coisas seria capaz de transformar esta vulgaridade industrial
numa obra de arte. O interesse mesmo, nestes caso, não
está no tema ou na história contada, mas na forma
de contar, esta forma que extrai de tudo reflexões que
o assunto não permitiria dada sua baixeza artística: é o
que faz Tarantino.
Como
Scott está longe de se aproximar do nível
de Tarantino, ficamos com as garras duma historieta de vingança
em que um guarda-costas vai atrás dos seqüestradores
da menininha por quem ele era responsável. Apesar de ser
até mais violento que Tarantino em muitas cenas, Scott
envereda, em seu fim, por uma conciliação hollywoodiana,
estabelecendo uma reviravolta que impede a condoída tragédia
que já se anunciava. Aliada a toda esta lama, concentra-se
a visão colonialista e preconceituosa dos ianques para
os mexicanos, onde policiais corruptos e uma sociedade a desmanchar-se
põem em perigo a vida agradável e doce duma garota
burguesa protegida por um americano que foi agente da CIA.
De
qualquer maneira, a expressão final do rosto de Denzel
Washington no carro dos criminosos, aceitando a morte como doação à menina
que ele amava, não deixa de revelar as possibilidades
de um ator ainda não descoberto pelo melhor cinema.
Por Eron Fagundes
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