23
de abril de 2007
Enquanto
desfilam os créditos iniciais, são
intercalados na montagem pedaços de planos
(primeiros planos móveis e rápidos)
onde a câmara acompanha o andar da bunda da
atriz Paula Braun. É o primeiro elemento de
provocação e choque de O cheio
do ralo (2006), o segundo filme dirigido pelo carioca Heitor
Dhalia; nossos olhos são encurralados por
esta bunda que depois, vista numa lanchonete em que
um cara faz um lanche, será ao longo do filme
a perseguição hipnótica da personagem
de Selton Mello, Lourenço, um antiquário
de maus jeitos e inarredável maldade para
com o semelhante. Paula Braun, com sua voz de expressiva
sensualidade e especialmente sua bunda, vive a garçonete
que desperta o interesse do esquisito e recluso Lourenço,
que subitamente desmancha um noivado porque não
sabe abdicar de sua solidão de teias de aranha.
Tudo é muito descarnado e certeiro em O
cheiro do ralo, desde a visão intersticial e constante
da bunda da garçonete, passando pelas referências
entre simbólicas e misteriosas ao cheiro que
emana do ralo do banheiro do antiquário, até uma
excêntrica composição dos tipos
que freqüentam a loja de antiguidades de Lourenço.
Entre os habituais desta fauna, uma garota desajeitada
que, necessitando de dinheiro, é humilhada
por Lourenço, que a obriga a mostrar sua bunda
opaca, num perigoso contraste com a bunda brilhante
que alucina a memória afetiva da personagem
do antiquário.
Extraído dum romance de Lourenço Mutarelli
e com um roteiro de Marçal Aquino, o mesmo
de O invasor, romance de Aquino e filme de Beto Brant,
O cheiro do ralo contém na verdade uma personagem
dostoievskiana na linha daquele desespero inconsistente
e sinuoso de Notas do subterrâneo, tudo adaptado à linguagem
e à estética pós-pós-moderna
do século XXI; lembremos que Nina (2004) era
a transposição para este universo das
inquietações de Crime e castigo (1866),
de Dostoiveski. Estas possibilidades entregam ao
ator Selton Mello seu papel mais denso no cinema,
a criatura grotesca do antiquário, mas nas
mãos de Selton adquire uma inesperada sutileza
e uma sensibilidade aguda e brilhante.
Um
dos achados centrais de O cheio do ralo é o
olho vítreo que um cliente negocia com Lourenço.
Este olho, que tudo viu, um dia vê a bunda
da garçonete e muda o rumo da história;
a bunda leva Lourenço constantemente aos lanches
ruins da lanchonete e estes lanches vão apodrecer,
defecados por Lourenço, no ralo da loja de
antigüidades, fedendo. O cheiro do ralo é um
jogo com o prazer que desanda em fedor; enfim, neste
aspecto, perversamente O cheio do ralo capta um dos
sentidos de nossa vida física: afinal não
são os mesmos órgãos do corpo
(a genitália, a bunda) que nos levam tanto
ao prazer (o sexo) quanto aos maus cheiros (o mijo,
a merda)? A mesma bunda feminina que queremos comer
em delírio é a bunda que horas depois
vai cagar no vaso as excrescências do corpo
que nos arrebatou.
Mas
O cheio do ralo é na verdade uma reflexão
dramática (Dostoievski outra vez) que ultrapassa
estas questões circunstanciais escatológicas
para se deter sobre os limites obscuros e claustrofóbicos
da solidão dos indivíduos.
Por
Eron Fagundes