DHá muita coisa por admirar em Cidade de Deus (2002), o filme que Fernando Meirelles extraiu do romance de Paulo Lins. Ao contrário de algumas películas recentes nascidas de livros (Sonhos tropicais, 2002, de André Sturm, e A paixão de Jacobina, 2002, de Fábio Barreto), a realização de Meirelles em momento algum dá a impressão de uma forma cinematográfica que ilustra com palidez uma obra literária. Desviando-se dos aspectos literários, aonde o diretor parece só ter buscado inspiração para um projeto de urgência (colocar em imagens a violência desenvolvida no Brasil nas últimas décadas do século XX), Meirelles cria sua própria linguagem de cinema, terrivelmente moderna em seu ritmo acelerado, desabusadamente superficial, procurando a emoção do olho do espectador. Desde a primeira seqüência, aquela tresloucada alternância de planos em que a correria atrás duma galinha chega ao limite da abstração visual dentro de seu simbolismo evidente, o filme de Meirelles é feito com urgência e potência. É uma emoção só em sua visão da favela carioca.
Há coisas que se opõem em Cidade de Deus. Os aspectos internos da linguagem (atores, cenários) foram construídos à maneira realista: se o livro de Paulo Lins é semidocumental porque o romancista-antropólogo investigou como um cientista seu assunto, o filme de Meirelles teve seu extenso elenco captado entre os favelados, daí esta forte impressão de realismo que passa ao observador o interior das cenas. Mas a linguagem externa adotada por Meirelles destrói com parte deste realismo: uma agilidade e rapidez que aproxima o cinema das facilidades publicitárias impede que a violência encenada chegue até nós com a força da realidade. Às vezes tudo parece muito rápido e quase abstrato. Os detratores de Cidade de Deus viram nesta questão motivo para execrar o filme. Acho que o problema, que existe (o distanciamento da violência, o afastamento do tom documental que poderia provocar um choque maior), não desmerece o terrível petardo que é a fita de Meirelles.
Num certo sentido, Cidade de Deus funde duas tendências do atual cinema brasileiro: colocar na tela um pouco de nossa literatura atual e, com seus aspectos mais documentais de certos elementos da linguagem (os atores, os cenários), ir ao lado oposto do cinema literário, articulado, ou seja, o cinema mais natural do documentário. Feitos os altos e baixos de sua produção, Cidade de Deus deve permanecer como um dos trabalhos mais fortes de nosso cinema de hoje.
Por
Eron Fagundes