O norte-americano David Lynch chega a seu supra-sumo. Cidade dos sonhos (Mulholland Dr.; 2001) é o mais complexo de seus filmes. Depois de História real (1999), cuja transparência em momento algum se confundia com a objetividade obtusa rotineira em Hollywood, Lynch volta ao labirinto mental em que rodou um de seus mais belos filmes, Estrada perdida (1997).
"Às vezes coisas boas acontecem", diz alguém numa das tantas frases absurdas e perdidas do falso roteiro de Cidade dos sonhos. Os diálogos, neste novo Lynch, evocam um pouco aquelas conversas fora de linha, patéticas mesmo de alguns trabalhos do francês Jacques Tati: a imagem, ou sua exacerbação, vai destruir a trivialidade da palavra; o plano geral em Tati e a pictoricidade grotesca de algumas aparições em Lynch são eventos cinematográficos pessoais de linguagem.
Como o francês Alain Resnais e o norte-americano Orson Welles, Lynch faz do cinema um jogo de montar, tão enigmático e cativante quanto possível. Mulholland Drive é o local em que ocorre o acidente automobilístico no início do filme e lá pelo final um escuro travelling de estrada mostra uma placa com o nome deste lugarejo localizado em Hollywood. Que é que evoca esta cena da placa com um nome? Em Cidadão Kane (1941) Orson Welles filma "Xanadu", a mansão do milionário retratado em sua narrativa, e em Providence (1976) Alain Resnais revela uma placa com o nome de "Providence", casa do escritor-personagem que está escrevendo suas memórias e de cujo material o relato de Resnais se compõe.
Três personagens envolvem a provocativa confusão do filme de Lynch. Uma morena que sobrevive ao acidente do início da fita, uma loira que quer ser atriz e um diretor de cinema; as criaturas são isto, e outra, pois a loira Betty vai transformar-se em Diane, amante de Camila, que antes era a desmemoriada que se intitulou Rita ao deparar com o cartaz do filme Gilda (1946), de Charles Vidor, em que aparecia a imagem e o nome de Rita Hayworth. Em suma, os fatos se enovelam em Cidade dos sonhos para provocar no espectador esta sensação de ilusão cinematográfica.
Por
Eron Fagundes