O CINEMA EM PALAVRAS
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9 de setembro de 2003

Os dois maiores cérebros cinematográficos gaúchos acabam de lançar dois livros básicos para o entendimento da percepção cinematográfica segundo a ótica dos que vêem filmes por aqui. São os únicos autênticos críticos de cinema produzidos no estado. No volume 8 da coleção “Escritos de cinema” editada pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, surgem os textos de Tuio Becker, com organização de Marcus Mello, cobrindo um período que vai de 1961 (Tuio era adolescente quando, ainda em Santa Cruz do Sul, de onde é natural, começou a publicar sobre cinema em jornal) a 2001 (o mais recente escrito trata de De olhos bem fechados, o derradeiro filme de Stanley Kubrick), ano da aposentadoria do jornalista; o resultado é o livro Sublime obsessão (2003), onde o leitor pode deslumbrar-se com a engenhosidade da visão cinematográfica de Tuio, sua rara memória para as coisas do cinema, seu raciocínio percuciente, a emoção em palavras em que ele joga com a emoção que o filme analisado lhe proporcionou. Igualmente sagaz é Luiz Carlos Merten em Cinema; entre a realidade e o artifício (2003); Merten foi roubado do convívio gaúcho pelos paulistas faz mais de dez anos e sua atual publicação é a terceira que sua apaixonada mente cinematográfica oferece ao público; ora didático, ora agudamente analítico, Merten apresenta uma generosidade crítica a toda a prova.

Pode-se dizer que Tuio Becker é um dos raros analistas de filmes que logra passar ao leitor a emoção que o filme desencadeou nele. Lendo-o, vemos transformar-se, com mestria, o cinema visto em palavras, que de tanta essência cinematográfica parece estarmos diante de pedaços de celulóide e não de elementos verbais. Cuido que só a alemã Lotte H. Eisner chegava a esse prodígio. Sublime obsessão é uma bela introdução àqueles que não conhecem o pensamento cinematográfico de Tuio. Mas é bom dizer: os textos de Tuio escritos ao longo de quarenta anos de um exercício crítico inigualável por aqui dariam matéria para mais dois ou três volumes tão extensos e tão densos quanto Sublime obsessão.

A frase de Tuio tem a beleza e a clareza de um pensamento cinematográfico que se descortina diante do leitor com significados inesperados, achados de observação. “Num plano bem próximo, o Super 8 226, que realizei há alguns anos, evocava a destruição de uma casa e mostrava uma mulher que morava naquela casa e que já morrera. Em movimento, ao vivo e a cores, o cinema tem esse lado sutilmente malvado de criar uma ilusão de realidade. Objetos e pessoas parecem vivos. O cinema simula a vida. Mostrando locais que não mais existem, pessoas que já desapareceram, ele provoca uma sensação de realidade. Mas como se trata de uma abstração (a imagem não pode ser tocada, como deseja a mulher vendo seu marido morto, no início de Starman, o homem das estrelas) a simulação do real deflagrada pelo filme transforma, no caso dos títulos citados, algo irreal num componente real: a dor.” Observe-se que o curta-metragem 226, dirigido por Tuio, é um dos mais belos feitos no Rio Grande do Sul e permite esta divagação entre a realidade e a irrealidade (até mesmo por sua forma narrativa) que está na essência das preocupações críticas do jornalista-cineasta em muitos de seus textos. Bem observa Luiz Carlos Merten no prefácio de Sublime obsessão: Tuio foi o único jornalista cinematográfico gaúcho que chegou a dirigir filmes.

Ao longo da coletânea, acompanhamos às vezes estupefatos, sempre atentos a lucidez de Tuio ao penetrar nos meandros dos filmes cerebrais de Andrei Tarkovsky e Krysztof Kieslowski e a extremada preciosidade das idéias que emanam do debruçar-se sobre a realização nipônica A volúpia da vingança, de Eizo Sugawa. “A elegância dos planos da narrativa de Sugawa baseia-se numa inteligente exploração do cenário e do roteiro.” Evoco que Tuio sempre foi um exegeta radical e inconformista; não me lembro de outro crítico por aqui que defendesse sem pudor obras tão revolucionárias em seus conceitos de cinema quanto Fata Morgana (1969) e Coração de cristal (1976), ambas de Werner Herzog, ou O poder dos sentimentos (1983), de Alexander Kluge. E defendia estas excentricidades não com argumentos e linguagem amorfos, mas com uma visão apaixonada e profunda, cheia de uma contagiante vitalidade. Era Tuio num tempo em que a cinefilia permitia estas ousadias provocativas.

Tuio sempre foi uma cabeça de cinema muito à frente de seu tempo e do provinciano meio em que sua inteligência se manifestava. Ao analisar Amarcord (1973), de Federico Fellini, num texto publicado em maio de 1975, ele assim se expressa nas frases finais: “Mais um ponto positivo na carreira de Fellini, seu último filme abre com o pé direito a programação do Cinema 1, que promete para este ano a apresentação de várias obras importantes, até então inéditas no Brasil. E fica aqui uma sugestão aos distribuidores da empresa Cinema 1: a apresentação de Os palhaços, do mestre Fellini.” Os palhaços só foi lançado na cidade vinte e sete anos depois, no fim de 2002: o que dá a medida dos anos-luz que separam o estágio avançado da mente de Tuio dos demais “seres cinematográficos” que vagam por aqui.

Uma das curiosidades descobertas pelo organizador de Sublime obsessão é a existência de um Tuio Becker contista. São poucos os textos de contos incluídos no volume, todos escritos na curva dos trinta anos do escritor, mas revelam elegância verbal e acuidade de movimentação ficcional que Tuio poderia ter desenvolvido se insistisse mais nos anos seguintes. Como Paulo Emilio Salles Gomes e Jean-Claude Bernadet, Tuio teve lá sua literatura à margem do cinema, embora um dos contos enverede por uma temática que inclui visões de filmes. Mas, examinando certas crônicas-críticas de Tuio, estas adotam a pose de um conto, com um jeito narrativo que escapa ao jornalismo informativo e vai para os braços duma ficção documental: é o caso de “A passagem da estrela incógnita”, em que, com habilidade, Tuio liga a passagem de Dominique Sanda por Santa Cruz do Sul ao momento em que, numa de suas andanças por Madri, nosso autor deu, sem o saber (embora desconfiando), com a atriz Sylvia Kristel no auge do estrelato da intérprete de Emanuele.

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No apêndice final de Sublime obsessão há uma entrevista que Tuio Becker deu, em 1988, à revista Alto Falante, de Santa Cruz do Sul; perguntado sobre a existência duma crítica de cinema em Porto Alegre, Tuio foi corretamente duro e chamou de comentários o que se fazia na cidade, afirmando que o melhor texto de cinema por aqui era, disparado, o de Luiz Carlos Merten. Seria, não fosse a existência dum Tuio Becker. É o que está bem revelado em Cinema; entre a realidade e o artifício, o novo apanhado histórico-contemporâneo a que Merten se abalança oito anos depois de Cinema, um zapping de Lumière a Tarantino (1995).

Novamente passa pelo crivo de um exegeta do cinema este aspecto duplo dos filmes de buscar emoções reais por meios notoriamente artificiais. Se Tuio falava da irrealidade das formas capaz de produzir uma dor muito real em certos espectadores ou personagens, Merten faz algo parecido quando reflexiona sobre Moulin rouge: “Baz Luhrmann também celebra o artifício em Moulin rouge, mas ao tentar lembrar-se do filme você reterá muito possivelmente as lágrimas de Ewan McGregor ou as da sublime Nicole Kidman, quando ela, como Satine, sabe que tem de mentir para salvar o amado. São lágrimas sinceras.” À transcendência totalizante da crítica de Tuio Merten substitui uma tentativa (realista? especulativa? científica?) de expor as mutações da máquina giratória que é a tecnologia cinematográfica.

Merten passa por Eisenstein e Orson Welles, aduz que talvez devamos esquecer Tarantino e Greenaway e desvenda o futuro do cinema assistindo a Ten, o mais recente filme do iraniano Abbas Kiarostami, sem deixar de olhar para O senhor dos anéis, as duas torres ou para Moulin rouge. Um olhar eclético, certamente. Merten fia-se que ninguém mais duvida que o cinema seja uma arte; e cita Robert Bresson, Yasujiro Ozu, Abbas Kiarostami, Krysztof Kieslowski, para assacar contra os céticos. Vê na extraordinária cena do banho de Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, o embrião tecnicista de diretores como Steven Spielberg, Brian De Palma, George Lucas. Uma miscelânea barroca notável, sim, mas capaz de iluminar e ajudar nossa visão dos filmes. Ao contrário do que fazia no início de seu livro publicado há oito anos, Merten não se preocupa mais com definir se o cinema é uma arte, se ele às vezes é uma arte, às vezes um entretenimento passageiro; ele é uma arte por Bresson e Kiarostami. “Essa é uma via e talvez seja até a mais nobre do cinema, mas não é a única.” Merten não chega a dizer-nos se O senhor dos anéis é uma obra de arte, mas defende que o futuro do cinema passa por sua invenção digital. No entanto, esta interminável discussão sobre a essência artística do cinema não é a inquietação de Merten em seu novo livro: ele está mais preocupado em focar a realidade cinematográfica que nasce das formas irreais de encenação.

Esta irrealidade vai estar presente na utilização da câmara digital (que prescindiria do autor) pelo mais realista e humanista dos cineastas contemporâneos, o iraniano Abbas Kiarostami. Merten mostra que, quando um homem como Kiarostami (que sempre se opôs ao vazio da forma), entra numa experimentação estética tão radical quanto a de Ten, todas as portas estão abertas para o futuro do cinema.

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Cinema em palavras. A sublimidade do verbo-imagem em Tuio Becker. O cinema do consolo e da mutabilidade em Luiz Carlos Merten. Quando as palavras dos críticos se calam, vamos ao cinema conferi-las. Quando as luzes do filme se apagam, deitamos os olhos nas palavras dos críticos para desfrutar de novo e sob uma nova forma do filme. Ver o filme em imagens, rever o filme em palavras, vê-lo em palavras, revê-lo em imagens. Para quem gosta de cinema e para quem ama textos de cinema, é para estes que cérebros privilegiados como os de Tuio e Merten escrevem.

 

Por Eron Fagundes