A CÂMARA SOLTA PARA PERSONAGENS APRISIONADAS
 

 

28 de abril de 2008

Os créditos desfilam sobre um fundo preto, enquanto os ouvidos do espectador distinguem vozes circundantes e logo gemidos que se vão tornando cada vez mais gritados e doridos. No final do plano uma mulher exclama, em off: "É uma menina!" Este é o início de O círculo (Dayereh; 2000), filme iraniano de Jafar Panahi que busca discutir claramente a condição da mulher numa sociedade medieval como a do Irã. Terminada a apresentação dos créditos iniciais, a imagem esbranquiçada logo se aclara, observamos o ambiente da maternidade a partir duma pequena janela que encima uma porta de ferro.

Uma prostituta presa é jogada para dentro duma cela. O plano fixo sobre a personagem desfaz-se e surge uma panorâmica que acompanha as demais mulheres deste cárcere. O lento movimento de câmara vai deter-se numa janela que encima uma porta de ferro, e por esta janela o observador vê o que se passa do lado de fora da prisão. O filme encerra-se ali, nesta imagem claustrofóbica, uma rima visual com aquela "frase cinematográfica" que abre a narrativa, igualmente uma janelinha, mas que dá para o interior duma maternidade.

Na cena inicial, logo depois do enquadramento da janelinha, executa-se um plano-seqüência (a filmagem sem corte) em que a câmara se move para acompanhar as criaturas em cena. Só quando chega à rua, é que se rompe o plano-seqüência e começam os cortes: leves, sem pressa. Mas a conduta da câmara nesta cena de abertura -instável, perseguindo a personagem como se ela, a câmara, se metamorfoseasse nas pernas da personagem-vai marcar toda a narrativa.

O filme arrola episódios espontâneos, buscando uma quase documentação da realidade das ruas iranianas. O mais determinante destes episódios é o das jovens ex-presidiárias que encontram dificuldades para locomover-se naquele mundo opressivo e vigiado por guardas intolerantes. Mas há mais: a mãe que amarga ter de abandonar sua filha fiando que uma boa família acolha aquela desprotegida garotinha de três aninhos. Sem homem, a jovem ex-presidiária grávida não topa facilidades em seu caminho. E a prostituta é presa no final enquanto o homem que a acompanha é liberado. A velha mulher, no início do filme, recebe com pesar a notícia de que sua filha teve uma menina: a família do marido aguardava por um garoto. O círculo deixa claro: ser mulher no Irã é ser marginal. Como nos velhos jogos narrativos do neo-realismo italiano (basta pensar em Roma, cidade aberta, 1945, e Paisà, 1946, obras-primas de Roberto Rossellini), as muitas histórias fragmentadas servem a caracterizar a vida: é assim que a mente do indivíduo enxerga o mundo, fragmentos.

Depurando as novidades formais esboçadas em O espelho (1997), Jafar Panahi transforma O círculo num filme que mostra que a criatividade em cinema é algo mais palpitante e secreto que as fantasias escapistas admiradas pelo público, de que Harry Potter e a pedra filosofal (2001), de Chris Columbus, é o ponta-de-lança.

Por Eron Fagundes

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