19
de abril de 2005
A personagem
cega capaz de coisas maravilhosas em O clã das adagas
voadoras (Shi mian mai fui; 2004), o novo filme do chinês
Zhang Yimou, assemelha-se àquela criatura sem visão,
igualmente especialista em artes marciais, de Zatoichi (2003),
do japonês Takeshi Kitano. Mas onde Kitano falha levando
sua narrativa a esterilizar a emoção plástica
e dramática, Yimou lança luzes cinematográficas
tão inventivas que acabam por assombrar o espectador.
Sob a capa de um filme de ação que trata de lutas
marciais, a realização de Yimou é uma homenagem às
possibilidades suntuosas do cinema em que no fim confluem elementos
da ópera e da tragédia para os achados melodramáticos
do encerramento. Saímos cegos de tanta beleza da sala
de projeção: somos contagiados pela personagem
e sua trajetória.
A
magia de um filme como O clã das adagas voadoras foge
aos padrões habituais do cinema. A câmara de Yimou é incansável
em sua procura constante de criatividade; o cineasta dirige a
maioria das seqüências de seu filme como se estivesse
disparando uma flecha (a imagem) de seu arco (que é a
câmara), os cortes e a angulação simulam
o vôo da flecha; os interstícios romântico-reflexivos
rompem a ação plástica mas igualmente a
embasam. Uma das cenas mais belamente elaboradas da história
do cinema pode ter sido criada neste filme: a perseguição
que fazem num bosque ao casal central da narrativa vem a suspender
a respiração do observador, interminavelmente.
No
trabalho anterior de Yimou, Herói (2002), a China antiga
e seu gosto pelos embates marciais eram também o assunto.
Mas se Herói apresentava uma estética rudemente
masculina, O clã das adagas voadoras volta a liberar a
obsessão de Yimou pela alma da mulher, no que o jeito
de filmar do realizador é notavelmente sensível
para captar, em multiplicidade de cores e cruzamentos de sons,
o interior de uma personagem feminina.
Neste
sentido, é interessante observar a felicidade de
escolha e direção de Yimou ao expor suas intérpretes.
Zhang Ziyi, que esteve em O tigre e o dragão (2000), do
chinês Ang Lee, foi uma jovem apaixonada por seu professor
em O caminho para casa (1999), de Yimou, e participou do elenco
de Herói. Ziyi, dançando, lutando e interpretando, é uma
adequação lingüística perfeita à concepção
de lenda e maravilha que Yimou adotou para seu filme.
Como
signo visual, a cegueira cinematográfica construída
por Yimou e sua atriz produzem significados paradoxais e profundamente
inquietantes, algo que vem desde o cineasta cego do alemão
Alexander Kluge em O ataque do presente contra o restante
do tempo (1985). Para chegar à raiz da beleza, talvez tenhamos
mesmo de fazer-nos de cegos, como a protagonista de Yimou; a
beleza hiperbólica de O clã das adagas voadoras (não será de fato que toda arte é uma hipérbole?)
nos deixa momentaneamente cegos.
Por Eron Fagundes
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