01
de outubro de 2003
Pouco
antes de ir ao teatro ver a peça “Conto
de inverno”,
de William Shakespeare, um jovem intelectual diz à sua
acompanhante, evocando suas fugidias lembranças de leituras,
que na história do dramaturgo inglês ocorrem algumas
coisas extraordinárias. Parece-me que o filme Conto
de inverno (Conte d’hiver; 1991), o segundo da
série “Contos
das quatro estações”, do francês Eric
Rohmer (Rohmer, como o fazia o falecido polonês Krysztof
Kieslowski, trabalha por ciclos), tem sua iluminação
vinda do breve diálogo descrito na primeira frase deste
texto; esta iluminação dos significados e símbolos
da realização de Rohmer se completará depois
na maneira como o cineasta, convertido de diretor de cinema em
diretor de teatro, encena um trecho da peça de Shakespeare.
Acontecem coisas extraordinárias no universo de Shakespeare,
assim como Rohmer compõe algumas cenas extraordinárias
para dar pontos luminosos à banalidade que cerca suas
personagens; o extraordinário num filme de Rohmer assoma
inesperadamente no cotidiano; no seio de triviais discussões
sentimentais (expostas com uma secura e um distanciamento cerebrais
que as afastam daquelas existentes nos filmes de François
Truffaut) damos de repente com uma questão filosófica
que trata da vaca que está no início do romance A
mais longa jornada (1907),
do inglês E.M. Forster, assim
como irrompem na tela elevadas dissertações morais
que vão a Pascal e a Platão. Mas o extraordinário
a que alude Rohmer pode ser também aquele fim de narrativa
por que sua criatura feminina ansiava durante todo o filme mas
parecia um acaso impossível, o notável inesperado
que lhe vem numa trivial viagem em ônibus urbano.
A
trivialidade sentimental é um elemento cômico
que atravessa todos os filmes de Rohmer, sua comicidade é extremamente
mais profunda, secreta e exigente que aquela de seu discípulo
norte-americano Woody Allen; e Rohmer trata o elemento sentimental
com uma profundidade e um tom raro em cinema. As personagens
do cineasta francês não são somente corpos
e vozes impressos em celulóide; o ensaísta norte-americano
Harold Bloom dizia de sua admiração por Shakespeare
que eram mais do que nomes impressos nas páginas; é mais
ou menos isto que sucede com as criaturas de Rohmer e a agudeza
de sua criação. Ser uma personagem de Rohmer está com
a aura da originalidade: difere de tudo o que conhecemos em filme.
Rohmer filma seus pequenos dramas com uma extraordinária
objetividade que remete ao mestre de todos os realizadores franceses,
Jean Renoir. Porém adiciona a esta transparência
de imagem (que serenidade visual!) a invisibilidade do cinema
da alma de Robert Bresson. Acresce a particularidade do pensamento
cinematográfico de Rohmer, em que abundam diálogos
brilhantes e austeros mesmo quando trata de situações à flor
do coração.
Voltemos à encenação
de Shakespeare. Durante alguns minutos Rohmer se desprende
da condição
de diretor de cinema para ser um diretor de teatro. Roda a cena
um pouco como um documentário que se vê no espelho:
o jeito do plano, o rigor ao extrair o gesto do ator, o despojamento
de cenários e vestes – o teatro dentro do filme é o
prolongamento estilístico da narrativa cinematográfica.
Rohmer documenta a cena teatral e ao mesmo tempo deixa que a
emoção da peça influencie o documento. Documentário
e ficção ali se perdem: algo como ocorria quando
o alemão Alexander Kluge rodou trechos da ópera
Tosca na abertura de seu filme O ataque do presente contra
o restante do tempo (1985). É uma maneira nova de inserir
uma peça de teatro dentro de um filme: não é somente
uma ilustração ou o preenchimento de vazios narrativos; é também
uma iluminação de signos e uma justaposição
de estilos familiares entre si. E Rohmer não esquece a
emoção das personagens-espectadores que estão
na platéia.
Em
O joelho de Claire (1970) e Conto
de primavera (1990) ou mesmo
em alguns excertos de Pauline na praia (1982) havia uma personagem
matreira que, ocupando o posto de segundo narrador, provocava
os conflitos sentimentais que gerariam o drama. Em Conto
de inverno este segundo narrador estaria um pouco na protagonista, mas nem
tanto: dissolve-se na própria câmara de filmar e
na história. Como em Conto de verão (1996), a protagonista
vai circular entre três amores: aquele jovem com quem ela
viveu uma intensa paixão no prólogo da narrativa
e de onde lhe nasceu uma filha e, cinco anos depois, sua hesitação
entre um cabeleireiro e um rapaz intelectualizado; o litoral,
o salão de cabeleireiro e a biblioteca são os cenários
usados com mestria por Rohmer para definir seus seres, igualmente
definidos por uma enviesada e sutil direção de
atores a que não escapa nem a condução de
voz e a precisão da fala. O fim feliz de Conto
de inverno está muito longe de qualquer conformismo hollywoodiano; é,
pode-se dizer, uma reflexão (pascaliana) sobre a persistência
amorosa.
Se
o extraordinário desembarca no cotidiano do universo
de Rohmer, que teria tudo para ser uma contemplação
da rotina à maneira do japonês Yasujiro Ozu, é também
extraordinário que a filmografia de Rohmer, um dos cinco
mais originais realizadores vivos (os outros: o espanhol Carlos
Saura, o alemão Alexander Kluge, o italiano Michelnagelo
Antonioni e o sueco Ingmar Bergman), esteja finalmente desembarcando
em massa nos cinemas comerciais brasileiros. Sem dúvida,
um caso extraordinário.
Por Eron Fagundes
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