22
de dezembro de 2003
É com
a transparência e a jovialidade de sempre que o realizador
francês Eric Rohmer encerra o ciclo denominado “Contos
das quatro estações”. Conto de outono (Conte
d’automne; 1998) é o quarto segmento deste grupo
de películas que adota o modelo de filmar profundo e objetivo
em que Rohmer se vem exercitando em séries anteriormente
rodadas, como a dos “Contos morais” e a das “Comédias
e provérbios”.
Rohmer
fala dos problemas do cotidiano de uma maneira não
cotidiana. Seus temas nunca fogem a um eixo: as relações
sentimentais cortadas pela procura amorosa constante das personagens.
Mas este assunto comum tanto a Hollywood quanto a muitas telenovelas
brasileiras tem outro tratamento nas mãos de Rohmer, que
esmiúça os sentimentos e as idéias de suas
criaturas com um despojamento sensível que torna o estilo
cinematográfico do cineasta diferente de tudo o que o
espectador pode ver por aí.
Conto
de outono mantém o cerebralismo dialogado do cineasta
e mostra sua extraordinária capacidade de transformar
o banal numa outra coisa. Aqui Rohmer, como já acontecia
em Conto de verão (1996), deixa de recorrer a suas citações
intelectuais, que atravessam suas narrativas desde Minha
noite com ela (1969) e que ainda em Conto de inverno (1991) tergiversam
entre E.M. Forster e William Shakespeare. Rohmer pode ser definido
como o cinema-cérebro: um filósofo dentro da imagem
cinematográfica. Abdicando das zonas mais soturnas que
caracterizam as filmografias do sueco Ingmar Bergman e do francês
Robert Bresson, Rohmer atinge idêntica profundidade.
Como
em todos os trabalhos de Rohmer, há uma personagem
forte que é uma espécie de narrador-auxiliar deste
cinema-cérebro que conta as histórias e vai manipulando
os sentimentos das outras criaturas (mais fracas) da trama. No
caso de Conto de outono, este ser é vivido pela característica
atriz rohmeriana Marie Rivière, que desde jovem atua sob
as ordens de Rohmer (foi vista nas obras-primas A mulher
do aviador,
1981, e O raio verde, 1985); Rivière é Isabelle,
uma esperta mulher da campanha francesa que busca ajudar sua
amiga vitivinicultora a aproximar-se de algum homem depois da
viuvez (Bétrice Romand, outra antiga rohmeriana, interpreta
esta amiga); a coisa se complica quando a namorada do filho da
viúva insere um novo pretendente para a mulher solitária,
um professor de filosofia com quem ela, a jovem namorada, tem
relações ambíguas; numa festa de casamento
o clímax amoroso se confunde e bifurca, a mulher entre
dois homens e suas insatisfações e contrariedades.
Conto
de outono vai concluir-se com as imagens de um baile, em que
percebemos Marie Rivière dançando alegremente.
A procura sentimental da protagonista não se fecha, deixando
as possibilidades abertas. Mesmo lidando com algumas emoções
delicadamente difusas, Rohmer evita os tons sombrios buscados
pelos cineastas da alma; a visão da alma segundo Rohmer é um
sol que esplende sobre a planície. Neste aspecto, ele
está mais próximo daquela translucidez documental
do japonês Yasujiro Ozu do que dos torturados sofrimentos
espalhados pelas imagens de seu patrício Robert Bresson.
Por Eron Fagundes
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