2
de setembro de 2003
A pudicícia
de filmar do cineasta francês Eric Rohmer está novamente numa
tela de Porto Alegre em Conto de verão (Conte d’été; 1996),
a terceira realização agrupada sob a denominação de “Contos das
quatro estações”. Aqui, mais do que nunca, Rohmer está próximo
daquela banalidade natural de seu mestre Jean Renoir, esquivando-se
bastante à tensão metafísica que ele herdou de outro de seus mestres,
o igualmente francês (como Renoir, como Rohmer) Robert Bresson.
Mas ainda e sempre o realizador permanece fiel a seu estilo despojado
e muitas vezes singelo, quase amadorístico em sua contenção de
recursos; atores cujas faces são desconhecidas do grande público,
permitindo uma desinterpretação das personagens, uma montagem
cinematográfica clássica e a absoluta ausência de música na faixa
sonora mesmo numa narrativa em que o protagonista é um músico
de violão.
Quando
realizou Conto de verão, Rohmer contava com setenta e seis
anos. Como ocorria com Luis Buñuel na velhice, o que impressiona
agora nos filmes de Rohmer é o frescor e a juventude de uma linguagem
cinematográfica que não parece concebida por um homem tão idoso.
Ao debruçar-se sobre as indecisões da mocidade, Rohmer figura
um jovem que espia outros jovens; ele executa o que se poderia
chamar “documentário de sentimentos”, radiografa pequenas almas
francesas com extrema objetividade.
São
filmes incômodos por sua austeridade e por uma secura e despojamento
de intenções; incomoda sim aqueles que estão sempre buscando a
mensagem de um filme, que diabos quis o cineasta dizer com estas
frugalidades. Rohmer contempla suas personagens com distanciamento,
sem interferir. Por uma destas felizes coincidências de programação,
ainda está em cartaz na cidade Dirigindo no escuro (2002),
realizado por Woody Allen, discípulo norte-americano de Rohmer.
Observando os dois filmes, ambos destaques do cinema em 2003 por
aqui, pode-se saber por que o ascetismo de Rohmer topa mais dificuldades
com o público: não tem o laivo de pasteurização (ainda que intelectualizada)
de Allen.
No
caso de Conto de verão, Rohmer baixou a guarda intelectual.
Suas criaturas são mais simples: estão mais preocupadas com seu
cotidiano e suas relações sentimentais, e portanto as referências
eruditas dos diálogos deixam de existir, ao contrário do que ocorria
no encantador Conto de inverno (1991), em que surgia até
uma altercação sobre a “vaca filosófica” do ficcionista inglês
E.M. Forster. Daí a impressão de aparente coisa boba que a história
de Conto de verão pode passar; na verdade, Rohmer, mesmo
tratando de temas mais terra a terra, é tão profundo e denso quanto
o russo Aleksandr Sokurov em Taurus (2002) ou o japonês
Takeshi Kitano em Dolls (2002), outros dos mais belos filmes
da atual temporada de cinema em Porto Alegre.
Em
Conto de verão Gaspard, um jovem músico que gosta de experimentar
suas canções no violão, chega a uma praia da Bretanha para esperar
sua namorada. À maneira de O joelho de Claire (1970), uma
das obras-primas de Rohmer, Conto de verão é exposto como
um diário em imagens: os capítulos (meio como um romance literário
–Rohmer é o mais literário dos cineastas) tem por títulos os dias
em que os episódios se passam, dia do mês subtitulado pelo dia
da semana. Os primeiros movimentos de Conto de verão são
silenciosos e acompanham os passos iniciais do jovem pela estação
praiana. Quando ele dá com Margot, a estudante-garçonete conversadeira,
os diálogos rohmerianos começam a escorrer com a abundância de
sempre, embora sem os excessos intelectuais de antes. Surge depois
mais uma garota: a sensual Solène. Entre as três garotas Gaspard
demonstra sua hesitação de moço. É no que Rohmer se contenta:
observar, sem julgamentos preconceituosos, a insatisfação sentimental
de seu protagonista. Ao cabo, ele desiste de todas as pretendentes
de seu coração e parte em busca de sua música, pois, segundo diz,
a música é mais importante que tudo, algo assim como aquilo que
outro francês, François Truffaut, recitava a certa altura de A
noite americana (1973): o cinema reina, o cinema é mais importante
que a vida, devemos esquecer nossos conflitos humanos para se
entregar a ele; Rohmer substitui o cinema pela música em seu jovem
protagonista.
Com
uma forma cinematográfica em que o baixo custo financeiro se evidencia
e pode parecer assombroso diante dos costumes industriais a que
acostumaram os olhos do espectador, e dividindo os assistentes
entre aqueles que o taxam de tedioso e outros que o têm por gênio
do cinema, Rohmer é um cineasta raro, fora de padrão. Todos os
seus filmes mantêm uma coerência estilística e temática, desde
um clássico como Minha noite com Maud (1969), dificilmente
encontrável em qualquer outro diretor de cinema.
Por Eron Fagundes
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