22
de novembro de
2004
Uma
amiga assoprou-me, numa sessão do Clube de Cinema de Porto
de Alegre (sessões que ocorrem aos sábados e aos
domingos pela manhã): “Notaste como, quando se trata
de filmes brasileiros, o público diminui bastante?” Num
artigo sobre São Bernardo, o filme de Leon Hirszman rodado
em 1971, o crítico gaúcho Luiz Carlos Merten se
refere a “dificuldades de linguagem que são irritantes”,
a “planos longos demais” como se Hirszman tivesse
mesmo inabilidade técnica para montar um filme (tudo está no
livro “Um sonho de cinema”, coletânea de artigos
de Merten recentemente editada pela Secretaria Municipal de Cultura
da capital dos pampas). Muitos disseram que Glauber Rocha, o
mais polêmico cineasta brasileiro, fez seus filmes do jeito
que estão porque nunca soube filmar mesmo. Enfim, afirmam
que diretor brasileiro não tem platéia porque não
conhece a gramática cinematográfica; ainda bem
que surge um Olga (2004), de Jayme Monjardim, para nos redimir
com os espectadores: obrigado, Jayme...
Enquanto
seu Jayme não vem de novo, detenho-me em Contra
todos (2004), do paulista Roberto Moreira, exibido numa sessão
de fim de tarde duma sexta-feira outonal e chuvosa para míseras
quatro pessoas, entre os quais o desolado indivíduo que
espalha estas linhas. Como ocorria em outra produção
paulista atual, Nina (2004), de Heitor Dhalia, e de maneira ainda
mais suja e brusca, a narrativa de Moreira exacerba na inquietação
formal. Se Dhalia recorria basicamente à fotografia e
a uma montagem de planos em que os cortes e as relações
de linguagem entre os planos tentavam aproximar-se da interioridade
da história de Dostoievski que lhe serviu de base, Moreira
deixa a câmara sempre na mão do fotógrafo
e, valendo-se das possibilidades da imagem digital, dá fluência
rítmica à turbulência de situações
encenadas. Cada cena causa no espectador sentimentos ambivalentes:
a soltura formal (da câmara e do elenco) nos transporta
a uma naturalidade meio rara no cinema que se faz por aqui; por
outro lado, a imposição da câmara colando-se
nos cenários e nos corpos dos atores, elevando-se à condição
de uma personagem intrusa como era nos filmes de Glauber, provoca
um ranço naturalista de que Moreira não logra safar-se.
A projeção do filme entra a toda, antes mesmo dos
créditos iniciais; a câmara, inquieta, móvel,
observa uma reunião de amigos em família que já vai
pelo meio; ouvimos as conversas banais, gestos sem sentido, uma
indefinida ambientação suburbana, nosso olhar e
atenção é jogado com brutalidade num universo
em que vamos mexer-nos com uma tensão sempre exasperante.
Tudo parece muito real e ao mesmo tempo muito artificioso. Pouco
depois numa seqüência em que a criatura vivida pela
gaúcha Leona Cavalli (que repete algo do tom debochado
e irreverente de sua personagem em Amarelo manga, 2002, do pernambucano
Cláudio Assis, onde ela exibia em primeiro plano sua oferecida
vagina; aliás, há identidades formais e temáticas
entre o que Assis colocou na tela e o filme que estou analisando)
vai a um açougue damos com imagens e falas que parecem
extraídas diretamente do real: o vocabulário, a
sintaxe, os clichês de gesto e verbo, tudo se passa conforme
entre açougueiro e freguesa; segundo depoimento do próprio
diretor, os diálogos que compusera no roteiro inicial
foram desprezados por via de regra na hora da filmagem dando
lugar à improvisação dos atores. Há muitos
planos de espera em Contra todos: planos vazios de sentido, não
acontece no plano nada de significativo, a conversa (quando a
há) é mesmo mole e inclusive o gesto do ator não
diz nada. Intenção: Moreira quer desdramatizar
o possível mundo de repugnâncias de seu filme. É claro
que falta ao realizador a capacidade de Nelson Pereira dos Santos
para harmonizar certos elementos aleatórios do realismo
cinematográfico; Nelson, em alguns de seus trabalhos,
se revelou um mestre do plano natural e do plano de espera.
O
título do filme de Moreira remete a um romance do igualmente
paulista Diogo Mainardi, Contra o Brasil (1998). Como a narrativa
de Mainardi, a de Moreira desaba numa ira contra muitas coisas;
esta ira se enovela tanto em si mesma que acaba por recolher
o rabo em sua impotência, caindo em seu perigoso vazio.
Talvez mesmo um vazio desejado e consciente como única
forma de representar os entraves e os impasses atuais do país.
Por Eron Fagundes
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