07
de outubro de 2003
Nos
primeiros movimentos, a narrativa de Coração de
fogo (Corazón de fuego; 2002), filme uruguaio de Diego
Arsuaga, escorre como um drama realista e político; a
sucessão clássica dos planos e uma certa plástica
dos enquadramentos podem induzir o observador destes primeiros
passos da câmara pela aventura dos três idosos dentro
duma locomotiva a identificar uma obra sem grandes vôos.
Na
verdade, Coração de fogo é formalmente
isto mesmo: abdica de qualquer veleidade revolucionária.
Onde o filme de Arsuaga inova é na profundidade de sua
emoção, nascida da transparência e da beleza
com que é encenada uma história de rebeldia terceiromundista:
embora arraigado num nacionalismo exacerbado, Coração
de fogo em momento algum vai parecer rançoso e ultrapassado;
seu recado é extraordinariamente novo e emocionante.
Apesar
de sua feição mais clássica e realista,
Coração de fogo vai adquirindo uma personalidade
como filme pela inserção objetiva de algumas metáforas
que lhe dão inusitada dimensão poética.
A velha locomotiva é a metáfora do filme, sua notável
nostalgia; aliada aos velhos que a roubam quando (magnatas) ameaçam
de vendê-la para Hollywood, a locomotiva simboliza a rebeldia
castelhana contra o colonialismo. Dito assim, parece ranço
ideológico e obviedade demais; mas não é o
que está na fita: o gesto das personagens está lotado
de versos que só um poeta da câmara como Arsuaga
poderia colocar na tela.
Além de ser um grito nacional contra Hollywood (da sociedade
e do cinema uruguaios), Coração de fogo se detém
na contemplação da velhice com uma vitalidade jovem:
para tanto, conta com três extraordinários atores
argentinos (Héctor Altério, Federico Luppi –não
me lembro de tê-lo visto desde os tempos em que ele atuava
nos anos 80 em filmes de Adolfo Aristarain por aqui só vistos
em sessões especiais—e Pepe Soriano) que seguram
magistralmente as rédeas da narrativa e da locomotiva.
Sabe-se que filmes cuja temática é a velhice estão
condenados a serem venenos de bilheteria, pois o cinema é majoritariamente
freqüentado por jovens e a juventude detesta olhar-se no
espelho de amanhã; mas, como certa vez me disse o crítico
de cinema Tuio Becker, com o tempo aprendemos a valorizar estas
coisas.
Como
fecho destas observações, quero evocar alguns
filmes que utilizam o trem como quase-personagem. Uma locomotiva
desgovernada estava na cena de Expresso para o inferno (1985),
do russo Andrei Konchalovsky. Num trem vertiginoso, em Europa (1991), o dinamarquês Lars Von Trier estudava a história
contemporânea de seu continente. Havia cenas interiores
de trem na obra-prima Esse obscuro objeto de desejo (1977), do
espanhol Luis Buñuel. Em Italianos (1996) o italiano Mauricio
Ponzi fazia outro percurso histórico a bordo de um trem.
Nos filmes do japonês Yasujiro Ozu os trens eram por via
de regra personagens fugidias no cenário.
Em
Coração de fogo a locomotiva é uma personagem
que empurra as personagens humanas para o interior de seu sonho.
Um expresso para a realização do que se deseja.
Um instante poético, como definiu a criatura de Héctor
Altério sobre um ato atrevido e à primeira vista
irresponsável do maquinista improvisado de Federico Luppi.
Por Eron Fagundes
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