15
de novembro de 2005
A
guerra do Vietnã foi um problema tão
sério para a boa consciência norte-americana
que, para falar dela na vitrine de Hollywood, os
cineastas tinham de desconversar em melodramas ambíguos
(Amargo regresso, 1978, de Hal Ashby), afrescos narcisistas
(O franco atirador, 1978, de Michael Cimino) ou símbolos
barrocos (Apocalypse now, 1979, de Francis Ford Coppola).
Só um documentarista, um repórter com
a têmpera de Peter Davis poderia rodar algo
tão contundente e sincero quanto Corações
e mentes (Hearts and minds; 1974), cujo retorno em
cópia restaurada só pode ser saudado
como um evento do ano; é um modelo de documentário
político, e sua ferocidade, sua provocação
e sua câmara giratória têm hoje
um discípulo em Michael Moore, que não
esconde sua admiração pela obra de
Davis, cujo método Moore se esforça
por imitar e modernizar em seus trabalhos; eu já iria
dizer que a comparação entre o clássico
de Davis e os produtos dali extraídos por
Moore dão bem a idéia do abismo que
separa o cinema da década de 70 do de hoje,
expondo-me à acusação de retrógrado
e envelhecido, mas gostaria que antes o leitor fosse
ver Corações e mentes, é o pressuposto
para melhor gozar esta crônica.
Davis
exercita sua habilidade de montador ao compor Corações e mentes; a montagem é o
coração da película, é pelo
confronto de imagens, pela junção dos
planos que o filme sai de seu didatismo histórico
para a emoção do público. É verdade
que a guerra do Vietnã apaixonava as platéias
da época e hoje não diz muita coisa; é verdade
que, para o espectador alienado de nossos dias, a
relação que se pode estabelecer com
a intervenção americana no Iraque em
anos recentes, é meio secreta e não
transparece tanto assim, pois os condicionamentos
se alteraram bastante nestes trinta anos; porém
Corações e mentes atinge como um soco
o nervo da civilização americana, equivale
esteticamente aos petardos lançados pelos
bárbaros árabes em Nova Iorque em 11
de setembro de 2001, Davis era um americano consciente
num universo em que muitas cabeças boas ao
redor pareciam pender para o oba-oba oficial.
A
montagem objetivada por Davis apresenta uma sutileza
espantosa. À maneira de Orson Welles ou Alain
Resnais, Davis brinca na moviola para dizer o que
bem entender. Imagem a imagem, tudo extraído
de arquivos jornalísticos pré-existentes
ou fabricados pelos cinegrafistas de Davis, surge
uma reflexão sobre as origens da guerra: mostra-se
como se insinua no cotidiano do americano o fascismo
e o racismo que gerou aquela guerra absurda; um soldado
americano machuca debochadamente uma prostituta vietnamita,
um piloto fala insensivelmente de sua ação
no Vietnã, uma outra figura diz dos orientais
coisas estapafúrdias (“eles não
valorizam a vida como os ocidentais”): todas
estas relações são narradas
pela montagem, a montagem nasce da relação
entre as imagens, a montagem é o narrador
do filme Corações e mentes; a história
que Davis quer contar e as reflexões oriundas
desta história estão dentro da montagem:
não no diálogo, não no gesto
da personagem, não na imagem em si.
Há cenas duras, quase insuportáveis:
um soldado ianque estoura à queima-roupa os
miolos dum vietnamita e o observador vê atônito
o jorro de sangue que esguicha do cérebro
oriental, o desprezado cérebro oriental; um
vietnamita chora num discurso feroz dizendo que dará a
blusa de sua filha morta à equipe de filmagem
para levar a peça de roupa ao presidente Nixon.
Davis mostra o holocausto vietnamita como centro
de sua temática, mas não esquece de
alfinetar o holocausto americano: os mutilados de
guerra, todos jovens e quase incapacitados para a
vida comum.
Ato
de contrição da América,
Corações e mentes, talvez por ser pouco
evocado (Davis, ao que parece, só fez este
filme e é ignorado até pelos dicionaristas
de cinema), é um daqueles filmes que se revê suspirando:
puxa, eu já tinha esquecido que o filme era
tão bom. Lado a lado com Morrer em
Madri (1963),
do francês Frédéric Rossif, que
tratava da guerra civil espanhola, a obra-prima de
Davis é um marco do documentário político.
Por
Eron Fagundes