26 de julho de 2006
A narrativa de corte policial é a essência da linguagem cinematográfica do realizador greco-francês Constantin Costa-Gavras; ele insere os aspectos policiais de suas tramas em seus próprios conceitos de montagem, retirando este gênero, habitualmente desprezado pelo olhar crítico, do gueto escuro para uma luminosa dignidade cinematográfica. O corte (Le couperet; 2005) é o mais novo exercício de filmar do cineasta, que desta vez foi buscar nas páginas dum romance do norte-americano Donald E. Westlake matéria para mais um roteiro provocativo; se em Amém (2002), um dos melhores filmes vistos em Porto Alegre na temporada de 2003, Costa-Gavras acertava contas com a Igreja Católica na questão do nazismo, em seu novo trabalho o diretor cutuca a selvageria capitalista de competições por um lugar ao sol no mercado, o que poderia soar ingênuo e anacrônico neste inevitável princípio de milênio se não fossem as atualizações formais e temáticas que o autor de obras-primas como Z (1968; modelo de encenação farsesca das ditaduras militares a partir da Grécia dos coronéis) e Desaparecido, um grande mistério (1982; a flecha no coração da América para denunciar a envenenada e subterrânea participação ianque nos regimes de força da América do Sul, no caso o Chile de Augusto Pinochet) traz à tela.
De qualquer maneira, O corte está longe do esplendor da grande arte de Costa-Gavras, de que o anterior Amém é um exemplar mais aproximado. O corte se coloca como um correto espetáculo cinematográfico, um vôo mais rasteiro dentro das possibilidades do diretor, assim como foi seu O quarto poder (1997), que tratava do poder da mídia televisiva (sem a magia do italiano Federico Fellini em Ginger e Fred, 1985) e opunha dois métodos de interpretação que se chocavam, John Travolta e Dustin Hoffman. Na justeza do elenco, onde todos os intérpretes se encadeiam como notas duma pauta musical, O corte leva larga vantagem sobre O quarto poder; boa parte do misterioso clima de demência policial buscado por Costa-Gavras vem da interpretação insólita e cheias de alternâncias de José Garcia na pele do psicopata Bruno Devert, um desempregado que planeja matar todos os seus concorrentes a emprego no ramo de papéis, que é sua profissão; realista como denúncia social mas alegórico em suas metáforas perturbadoras, O corte sugere que todos nós, peças da sociedade capitalista, somos este doido que atravessa o filme como se fosse um pacato cidadão familiar, com esposa e filhos. O cinema tem tratado diferentemente desta personagem comum que explode em inesperada monstruosidade: o sarcástico diretor canadense David Cronenberg em Marcas da violência (2005) e outro canadense, mais secreto e profundo, Atom Egoyan, em O fio da inocência (1999). São os escapamentos de gases do cérebro ou um curto-circuito imprevisível dos fios elétricos da mente que podem transformar qualquer um em criminoso, como já sugeria uma esquecida obra-prima do cinema brasileiro, Ato de violência (1981), de Eduardo Escorel.
Mas percebo que já fui longe demais. Apesar das aparências, O corte foge a qualquer metafísica psicológica. Como sempre, Costa-Gavras aguça seu senso político e social para descrever os males duma época. As ditaduras e as perseguições políticas nos anos 70 e 80, uma sociedade cada vez mais despersonalizante no terceiro milênio. E todas estas observações executadas como se fossem meros exercícios narrativos cinematográficos, o que pode levantar novamente a polêmica sobre o formalismo impetuosamente comercial de seu cinema: atrofia o pensamento ou abre o pensamento para um público mais amplo? O corte é um corte no meio do caminho.
P.S.: O título é meio desligado do desenvolvimento geral do filme, mas se explica na cena em que o protagonista numa loja de roupas onde trabalha uma de suas vítimas como vendedor e o diálogo entre os dois se refere ao corte de uma roupa.
Por
Eron Fagundes