PERIGOSAMENTE AMBÍGUO
 

 

15 de novembro de 2005


Houve quem dissesse que a construção narrativa de Crash, no limite (Crash; 2005), dirigido nos Estados Unidos pelo canadense Paul Haggis, nascia dos chamados filmes coletivos do americano Robert Altman, onde se erigia um painel cinematográfico que acompanhava linhas de vidas paralelas e às vezes cruzadas. Surgiu também quem comparasse o sombrio plano e sem nuanças de Crash com os túneis irreversivelmente amargos de Magnólia (1999), do norte-americano Paul Thomas Anderson. Talvez pouca gente saiba que o mosaico de Altman, superficial e ligeiro como uma boa reportagem, não é o único caso de filme em histórias múltiplas: o alemão Alexander Kluge foi anos-luz mais complexo em obras-primas como O poder dos sentimentos (1983) e O ataque do presente contra o restante do tempo (1985). Altman é a fórmula a que o talento emprestou dignidade. Kluge é o gênio do olhar multifacetado. Que interessa tudo isto numa película feita para o consumismo cinematográfico habitual, ainda que rotulada de produção independente? Nada: a violência e a perplexidade que batem na tela em Crash compõem uma fotografia cheia de ambigüidade na visão que tem do racismo como fonte de selvageria e racionalismo –não é aquela ambigüidade do comportamento da personagem, a condição humana por exemplo, mas uma ambigüidade de intenções do filme e que se vale dum roteiro sinuoso para iludir o espectador sobre estas intenções.

A reação da crítica diante de um filme da avalancha comum como Crash, no limite é o mais divertido do caso. Um filme com muitas personagens entretecidas com episódios simultâneos? Por que ligá-lo a Altman e não a Kluge, quem sabe não vão à literatura de Marcel Proust buscar outras raízes? O que é superficial torna-se razão estrutural, o que é aparente vira questão de verdade essencial.

Obviamente muitos querem ver em Crash, no limite a sombra do 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Na verdade, o 11 de setembro já estava nos filmes de Sam Peckinpah e em Laranja mecânica (1971), de Stanley Kubrick: o 11 de setembro foi a aparência que tornou estes filmes ainda mais profundos, uma profundidade que Crash nenhum poderá atingir.

Por Eron Fagundes

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