BARRA PESADA NA FRANÇA
 

 

30 de agosto de 2006

Os irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne podem não ter ainda o prestígio dos italianos Paolo e Vittorio Taviani e dos americanos Joel e Ethan Coen; mas é outro exemplo duma característica una para dois irmãos cineastas: duas pessoas, uma só personalidade cinematográfica. A criança (L’enfant; 2005) é o mais recente filme dos Dardenne e chega aqui referendado por ter ganho a Palma de Ouro em Cannes, assim como em 1999 a Palma de Ouro ficou igualmente com os Dardenne pela realização Rosetta (1998); da mesma maneira que Rosetta, este A criança acaba por transformar na maioria dos planos os corpos das personagens em cenários, a câmara parece colada nos corpos dos atores, há um jejum absoluto de planos mais abertos ou planos gerais; a jovem desempregada de Rosetta é uma criatura da mesma família de personagens desgarrados e sem esperança do pivete francês de A criança.
No começo do filme um plano muito fechado acompanha uma jovem, com um bebê no colo, que bate à porta de um apartamento chamando por um nome de homem; vendo que ali estão outras pessoas a quem ele teria alugado o espaço, ela volta para o frio das ruas e vai encontrar o garoto, seu namorado, por ali. Vê-se logo que ela recém saiu do hospital, onde teve a criança.

O formalismo dos Dardenne nunca é uma questão vazia em seus filmes, sempre voltados para aspectos sociais da realidade. Em O filho (2002) o ambiente do local de trabalho de um carpinteiro determina os níveis de enfrentamento entre um carpinteiro e seu aprendiz, embora na origem desta luta surda se localize um problema pessoal entre os dois. Em A promessa (1996) são as relações subterrâneas de trabalho dos imigrantes irregulares na Bélgica que ocupam o centro do drama. Em Rosetta o itinerário duma desempregada é ousadamente documental. O adolescente inesperadamente transformado em pai, em A criança, tem dificuldades em adequar seu mundo irregular com as transformações que o esperam na nova condição. Esnobado por sua namorada depois de tentar vender o bebê, perseguido pela gangue com quem negociara o bebê, colocando em risco num assalto um amiguinho menor que chega a ser preso, Bruno, o protagonista de A criança, tem um súbito gesto de consciência e responsabilidade ao entregar-se à polícia para livrar seu amiguinho preso; o choro final de Bruno, na visita que lhe faz Sônia, a namorada, na ampla sala de espera da prisão, é um momento de dor da personagem que a câmara observa com distanciamento, sem tomar partido.

Os jovens Débora François e Jéremie Renier percorrem o filme em desempenhos brutalmente naturalistas, desglamurizando inteiramente as figuras em cena. Observando os créditos finais, descobre-se uma curiosidade: o  bebê Jimmy foi “interpretado” por vários bebês, ou seja, era sempre o bebê disponível na hora da filmagem.

Nota final. O título deste comentário é uma homenagem a Barra pesada (1977), de Reginaldo Faria, onde o pivete brasileiro vivido por Stepan Necessian percorria uma trilha tão dura quanto a do Bruno de A criança, dois meninos (um brasileiro, outro francês) que viviam sua fome e viviam de golpes nas ruas de desproteção duma cidade.

Por Eron Fagundes

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