06
de março de 2006
Para os puristas da especificidade cinematográfica, as associações com o teatro e a literatura buscadas pela linguagem composta pelo cineasta brasileiro Beto Brant em Crime delicado (2005) são heréticas. Enfim, um herege entre nós. No começo do filme estamos assistindo a uma montagem teatral dentro da narrativa. E o teatro volta seguidamente a preencher as inquietações estéticas da realização de Brant; inclusive numa cena que começa como uma seqüência “normal” e depois um plano geral vai revelar o palco e por fim a platéia ( o olhar apavorado de Marco Ricca para o público – o público imaginário do teatro de mentirinha e o público verdadeiro da sala de cinema - é característico e perturbador, enquanto a mulher nua na cena ri do protagonista, numa cumplicidade com o público). Bem natural que os aspectos teatrais da linguagem se salientem, pois a personagem de Ricca é um crítico teatral: um severo crítico teatral cuja vulnerabilidade humana se evidencia diante da uma breve e intensa relação com uma jovem de perna amputada que é também modelo, musa e amante de um pintor erótico.
Como jornalista e crítico, a personagem vive escrevendo, mergulhada entre verbos e pensamentos. É por aí que a literatura faz “seus estragos” na linguagem cinematográfica de Brant. A palavra escrita nos textos minuciosos e elaborados de Antonio Martins e os diálogos medidos e citatórios de várias seqüências: aí está, Crime delicado é um raro ensaio cinematográfico brasileiro, como O príncipe (2002), de Ugo Giorgetti, ou Quanto vale ou é por quilo?, de Sérgio Bianchi. O hibridismo duma linguagem (cinema, teatro, literatura) permite a Brant agir sobre o pensamento com uma liberdade a que poucos diretores brasileiros de hoje chegaram.
Depois de três filmes mais ou menos próximos do público, embora não necessariamente sucessos de bilheteria, Brant partiu para outra: afastou-se bastante do público, ao menos de um certo público; há experimentações e obscuridades em Crime delicado que exigem um suporte maior do que ver somente filmes comerciais. Exigem de fato um contato do espectador com uma literatura filosófica e reflexiva. Fugindo do gosto habitual, Brant vai radicalizar o comportamento de sua câmara. Em seu filme anterior, O invasor (2001), a câmara era trêmula, desfocada, movia-se, exercitava-se a montagem dinâmica em que Brant acreditava. Em Crime delicado todos os planos são estáticos, duros, valorizam sobremaneira o ator, a palavra, o cenário; por exemplo, os planos do pintor, trabalhando com sua modelo (ele mistura-se a ela, para aproximar a arte da vida) e mais tarde derramando solitário as tintas sobre o desenho, são exacerbantes em sua fixidez. Além da imobilidade da câmara, que substitui os planos móveis e os alternados pontos de vista de O invasor, a montagem de Crime delicado é seca, áspera, agressiva e interiorizada, como no francês Robert Bresson: eis a guinada essencial do cinema de Brant, abandonar uma certa exterioridade de sua obra anterior para mergulhar no espírito, naquilo que está dentro do ser. O possível Quentin Tarantino do cinema brasileiro virou um documentarista da alma, como o italiano Michelangelo Antonioni.
A história da realização de Crime delicado ironicamente perturba o método autoral no cinema. Aparentemente. Diz Brant que seu filme sofreu a intervenção de muitas pessoas em seu roteiro e filmagem, do ator Marco Ricca ao fotógrafo Walter Carvalho passando pelas mais variadas discussões estéticas. Seria o cinema uma criação coletiva? Os inimigos do cinema dizem que o cinema não cabe no conceito de arte, pois esta é sempre criação de um só. Brant é autor Crime delicado? Cineastas como o brasileiro Walter Hugo Khouri e o norte-americano Woody Allen são possessivos donos de seus filmes, ainda que para os fazerem contem com o concurso de diversos auxiliares. Brant mudou em Crime delicado: teriam sido as influências, gerando uma espécie de autor coletivo? O que Brant deve a Bresson me parece claro em Crime delicado, e Bresson é dos que crê que o filme é obra de um indivíduo; Brant, investindo no cinema espiritual com a teoria do coletivo, joga lenha numa fogueira incendiária: qual é mesmo a natureza do cinema?
Por
Eron Fagundes